Brasileiro diz que resposta à pandemia deve estar
baseada em coordenação internacional para evitar disputa por equipamentos e
suprimentos médicos.
Nas últimas semanas, o mundo assiste, preocupado, a uma disputa sem
trégua por suprimentos equipamentos médicos escassos para proteção e combate à
pandemia do novo coronavírus. Um exemplo disso
ocorreu com governadores do Nordeste, que perderam uma encomenda de
respiradores artificiais da China, quando os produtos
foram retidos em uma alfândega dos EUA e repassados a uma empresa americana.
Nesse cenário, em que muitos países cogitam trazer de volta a seus territórios
a indústria farmacêutica e de suprimentos, o diretor-geral da Organização
Mundial do Comércio (OMC), o brasileiro Roberto
Azevêdo, diz que a autossuficiência é inviável.
Existe uma discussão
inédita relacionada à apropriação, por parte de um único país, de materiais que
são de interesse do mundo inteiro. Há algum tipo de regulamentação hoje sobre
isso?
Há
várias formas de “apropriação”. Proibir exportação de determinados produtos
para evitar escassez no território nacional. Uso do poder econômico para obter
contratos internacionais de suprimento de produtos essenciais. Uso autorizado,
ou não, de patentes de terceiros. Em cada um desses exemplos – e há muitos outros
– estaríamos falando de regulamentações distintas. No caso de restrições às
exportações ou uso de patentes, por exemplo, aplicam-se as regras da OMC. Nos
casos de compras de material estaríamos provavelmente lidando com contratos
comerciais privados. Neste caso, tende a prevalecer a legislação nacional sobre
a matéria, ou mesmo as disposições de um eventual acordo bilateral ou regional.
É uma resposta que varia caso a caso.
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mundo
Se o Brasil ou qualquer
outro país se sentir prejudicado, pode recorrer à OMC para pedir algum tipo de
sanção ou compensação?
Nos
casos onde as regras da OMC são aplicáveis, sem dúvida existe a possibilidade
de recurso. Em casos de real emergência, no entanto, as disciplinas da OMC
permitem muitas das medidas que estão sendo adotadas. Mas o que faz sentido em
emergências nacionais isoladas não necessariamente ajuda no caso de uma
pandemia global. Estamos vivendo tempos excepcionais, com uma pandemia que se
alastra em altíssima velocidade. Não temos tempo para litígios complexos,
debates alongados ou grandes negociações. Se quisermos respostas rápidas e
eficazes, o que precisamos é de coordenação e entendimentos internacionais que
sejam objetivos e pragmáticos. Apesar de algumas tratativas no G20 (grupo
formado pelas maiores economias do mundo) e em alguns foros especializados, não
estamos vendo o tipo de coordenação necessária no plano internacional. Essa é
uma lição que já deveríamos ter aprendido com as pandemias anteriores.
Na reforma da OMC, que
deverá ser retomada, esse tema vai surgir? Qual o formato?
Estamos
aprendendo muitas lições com a pandemia em curso. Lições que demandariam
reformas não só na OMC, mas em quase todas as Organizações Internacionais. Os
países precisam levar a sério a “realidade” – e não apenas uma mera
“possibilidade” – de que pandemias ainda piores estão pela frente. As gerações
futuras precisam estar melhor equipadas, com instrumentos de coordenação das
respostas que sejam rápidos, automáticos e eficazes. Precisamos agir, sem
rodeios e quase por reflexo, já nos primeiros momentos das pandemias.
A partir de agora, os
países serão ainda mais exigentes em termos de medidas sanitárias? Isso
significa que as barreiras não tarifárias tendem a crescer?
A
maior proeminência de medidas sanitárias não é nova e leva a muitas desavenças
entre países. Não resta dúvida quanto à prioridade da proteção da saúde humana.
Por outro lado, ela não pode ser usada como um pretexto para a introdução de
medidas que têm a meta central de proteger determinados negócios. O mesmo vale
para medidas de proteção à saúde animal e vegetal. Os membros da OMC adotam
centenas de medidas dessa natureza todo ano – e isso é natural. Com
consumidores cada vez mais atentos à qualidade e segurança do que compram, a
tendência é de maior proliferação de normas técnicas e de proteção sanitária e
fitossanitária. Temos mecanismos para exame e discussão dessas medidas na OMC,
de forma a evitar aquelas que têm claro viés protecionista. É uma das nossas
áreas mais ativas.
O senhor acredita que
serão gerados novos protocolos de segurança, como formação de estoques de
equipamentos de proteção individual?
Certamente.
Diversos países deverão adotar protocolos de saúde mais robustos. Também
suspeito que algumas políticas públicas favorecerão aumentos no estoque de
suprimentos médicos e de saúde considerados críticos. Haverá uma busca de
diversificação de fornecedores, tanto no mercado interno quanto no externo. Em
um primeiro momento, inclusive, poderá até haver a tentação de buscar a
autossuficiência em algumas das áreas consideradas “essenciais”. Mas acredito
que aos poucos ficará evidente que esse não é o caminho. A autossuficiência é
inviável em boa parte das vezes e tem um custo altíssimo para a sociedade,
sobretudo nos médio e longo prazos.
Qual a lição a ser
tirada com esse cenário?
Há
várias lições. A primeiríssima delas é a que precisamos estar melhor preparados
para pandemias futuras, sobretudo com mecanismos rápidos e efetivos de
coordenação internacional. Outra grande lição é a importância do comércio para
o abastecimento de produtos de saúde e segurança a preços acessíveis. Isso
seria inviável em uma economia fechada, ainda mais se atingida por crises dessa
natureza. Finalmente, os governos precisam estar equipados para enfrentar os
efeitos de choques de oferta e demanda profundos, mas temporários – seja em
resposta a pandemias, seja para debelar crises de natureza econômica.
Aprendemos com a crise financeira de 2008 e estamos usando muitos dos remédios
econômicos e financeiros que desenvolvemos ali. Novas receitas importantes também
devem emergir desta crise.
O Globo.
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