O Supremo Tribunal Federal (STF) tem na pauta desta quarta-feira (6) a retomada do julgamento que pode resultar na descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. Com votação iniciada em 2015 e placar de 5 a 1 favorável a algum tipo de flexibilização, o tema aguarda há 9 anos por um desfecho.
Corte retoma hoje julgamento iniciado em 2015.
Com votação iniciada em 2015 e placar de 5 a 1 favorável a algum tipo de flexibilização, o tema aguarda há 9 anos por um desfecho. | Paulo Pinto / Agência Brasil
No caso concreto, os ministros
julgam um recurso contra uma decisão da Justiça de São Paulo, que manteve a
condenação de um homem flagrado com 3 gramas de maconha. Ele foi enquadrado no
Artigo 28 da Lei das Drogas (Lei 13.343/06), segundo o qual incorre em crime
quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo”
droga ilícita para consumo pessoal.
As penas são brandas e incluem
advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços comunitários e
outras medidas educativas. No Supremo, contudo, a controvérsia envolve saber se
o usuário causa, de fato, algum tipo de dano à sociedade ao consumir substância
ilícita, para que tal ato possa ser enquadrado como crime.
Outro ponto em debate é saber
em que medida o Estado pode interferir na opção feita por alguém de consumir
uma substância, seja lícita ou ilícita, sem ferir os princípios da intimidade e
do direito a ter uma vida privada. De modo preliminar, os ministros respondem
também a questão se cabe ao Supremo deliberar sobre o assunto, ou se isso seria
tarefa apenas do Congresso.
O julgamento é o primeiro item
da pauta do plenário desta quarta-feira, na sessão marcada para as 14h. O caso
será retomado com o voto do ministro André Mendonça, que pediu vista (mais
tempo de análise) na retomada do julgamento anterior, em agosto do ano passado.
O recurso em julgamento tem
repercussão geral. Isso significa que, ao final, o plenário do Supremo deverá
estabelecer uma tese que servirá de parâmetro para todos os casos semelhantes
na Justiça.
Descriminalização X legalização
Para o relator do caso,
ministro Gilmar Mendes, a conduta do usuário de drogas não é crime. Por seu
voto, proferido há cerca de 8 anos, o consumo de qualquer substância é uma
decisão privada, e eventual dano causado recai sobretudo sobre a saúde do
próprio usuário. “Está-se a desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em
risco a própria saúde”, argumenta.
Gilmar Mendes sustenta que
criminalizar a conduta do consumidor de drogas resulta em estigmatização, o que
prejudica os esforços de redução de danos e prevenção de riscos preconizados
pelo próprio Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas.
Ao fundamentar sua decisão, o
relator se valeu da tradição doutrinária alemã, e concluiu ser dever do Supremo
ajustar a proporcionalidade de normas penais que tratem de danos abstratos,
como é o dano contra a saúde pública supostamente praticado pelo usuário de
drogas. Nesse caso, ao criminalizar a conduta, o legislador teria sido
desproporcional, extrapolando suas atribuições, disse o ministro, o que
justificaria a intervenção da Corte.
O relator se empenhou ainda em
argumentar a diferença entre descriminalizar o consumo e legalizar drogas
ilícitas. Legalizar, frisou Mendes, é um processo legislativo autorizador e
regulador do consumo, nos moldes do que foi feito em países como o Uruguai e em
alguns estados dos Estados Unidos.
“Quando se cogita, portanto, do
deslocamento da política de drogas do campo penal para o da saúde pública, está
se tratando, em última análise, da conjugação de processos de descriminalização
com políticas de redução e de prevenção de danos, e não de legalização pura e
simples de determinadas drogas”, afirma.
Na retomada mais recente do
caso, o relator decidiu recuar um pouco em seu voto, de modo a descriminalizar
o porte somente em relação à maconha.
Autocontenção
O ministro Edson Fachin também
votou na linha de Gilmar Mendes, concordando que o consumo de drogas faz parte
da autodeterminação individual, que “corresponde a uma esfera de privacidade,
intimidade e liberdade imune à interferência do Estado”.
Dizer que usar drogas é crime
seria uma atitude estatal moralista e paternalista, argumentou Fachin.
O ministro, contudo, ressalvou
que o tema é “hipercomplexo”, havendo “ausência de resposta perfeita”. Fachin
frisou ainda que o caso concreto em julgamento trata do porte de maconha, e
que, por dever de autocontenção, a decisão do Supremo de descriminalizar o
porte de drogas para consumo pessoal deve se ater apenas a essa droga.
Fachin destacou que, a seu ver,
o porte de drogas para consumo próprio não causa, em si, dano a bem alheio.
“São somente condutas derivadas desse consumo que resultam em tais danos - como
o furto para sustentar o vício. Tais condutas derivadas, porém, já são
previstas como crime por outros dispositivos penais, não sendo necessário
criminalizar o porte de drogas para consumo próprio”, concluiu o ministro em
seu voto.
O ministro Luís Roberto
Barroso, presidente da Corte, seguiu a mesma linha de raciocínio, votando pela
descriminalização do consumo exclusivamente de maconha, em virtude dos direitos
à intimidade e à vida privada garantidos pela Constituição.
Assim como Gilmar Mendes,
Barroso frisou que a medida significa dizer que o Estado não tem poder de
interferência, ou muito menos de punir, sobre o porte de drogas para consumo
pessoal. “Tal afirmativa, porém, não resulta na legalização do consumo de
drogas ilícitas, nem mesmo da maconha”, sustentou o ministro.
O ministro Barroso admitiu ser
inconsistente descriminalizar o consumo ao mesmo tempo em que a produção e a
distribuição de drogas seguem sendo crimes. Ele defendeu, contudo, que caberá
ao Legislativo, um dia, equacionar tal inconsistência por meio de eventual
legalização. O ministro também citou exemplos, que para ele são bem-sucedidos,
como os de Portugal e Uruguai.
“Estamos lidando com um
problema para o qual não há solução juridicamente simples nem moralmente
barata”, disse.
Quantidade
Indo um pouco além, Barroso
focou seu voto também nas consequências da criminalização do porte de pequenas
quantidades de maconha para os altos índices de encarceramento no Brasil,
sobretudo de jovens negros.
Nessa linha, Barroso insistiu
ser necessário estabelecer uma quantidade específica para distinguir o usuário
do traficante, “pois deixar essa distinção a critério das autoridades, seja
policial ou judicial, apenas escancara o racismo presente nas instituições”,
argumentou.
Em seu voto, Barroso disse
considerar prioridade “impedir que as cadeias fiquem entupidas de jovens pobres
e primários, pequenos traficantes, que entram com baixa periculosidade e na
prisão começam a cursar a escola do crime, unindo-se a quadrilhas e facções.
“Há um genocídio brasileiro de jovens pobres e negros, imersos na violência
desse sistema”, alertou.
Valendo-se do exemplo de
Portugal, país pioneiro ao ter legalizado o consumo de todas as drogas, em
2011, Barroso sugeriu a quantidade de até 25 gramas como adequada para
diferenciar o porte de maconha para consumo ou para o tráfico. Em nome da
coerência, já que comprar a droga seguiria sendo crime, o ministro sugeriu a
liberação do cultivo de seis plantas fêmeas de maconha.
Esse entendimento foi reforçado
no voto do ministro Alexandre de Moraes, que trouxe dados da Associação
Brasileira de Jurimetria, segundo os quais 25% dos presos no país respondem
pelo crime de tráfico de drogas. Ele sustentou que a maior parte desses presos
poderiam ser enquadrados como usuários, se houvesse um critério objetivo. Como
não há, vão para cadeia em geral jovens e negros, disse.
“O STF tem o dever de exigir
que a lei seja aplicada identicamente a todos, independentemente de etnia,
classe social, renda ou idade”, defendeu Moraes. Para diferenciar consumo
próprio de tráfico de maconha, o ministro sugere o porte de uma quantidade de
25g a 60g.
Em agosto do ano passado,
poucos dias antes de se aposentar, a ministra Rosa Weber votou com o relator,
no sentido de descriminalizar o porte de maconha.
"Penso que o STF pode
ajudar nessa solução, sem prejuízo na atuação do Congresso. Quem despenalizou
para o usuário foi o Congresso, em 2006. Se mantém apenas a criminalização, o
Supremo daria um passo no sentido de descriminalizar quando se trata de uso
próprio", disse Weber.
Divergência
O único a divergir, até o
momento, foi o ministro Cristiano Zanin. O ministro argumenta que a
descriminalização apresenta "problemas jurídicos" e pode agravar o
combate às drogas.
"Não tenho dúvida que os
usuários de drogas são vítimas do tráfico e das organizações criminosas para
exploração ilícita dessas substâncias. A descriminalização, ainda que parcial
das drogas, poderá contribuir ainda mais para esse problema de saúde
pública", afirmou.
Apesar de se manifestar contra
a descriminalização, Zanin votou para fixar a quantidade de 25 gramas de
maconha ou seis plantas fêmeas de cannabis para configurar a situação de uso
pessoal em apreensões policiais.
Situação no mundo
Ao menos 38 países do mundo
promoveram algum tipo de permissão para o porte e o consumo de drogas. Além de
Portugal, Uruguai e alguns estados norte-americanos, também adotaram certo grau
de liberação países tão diversos como Quirguistão, Espanha e África do Sul.
Um dos movimentos mais recentes
para a descriminalização das drogas ocorreu na Alemanha, onde o parlamento
aprovou em fevereiro a descriminalização do uso recreativo de maconha, embora a
compra da droga esteja submetida a regras rigorosas.
Em parte desses países – como
na Argentina, Colômbia e Polônia – a flexibilização para o porte e o consumo de
drogas ocorreu por decisão judicial. Em outros – como em estados dos EUA, em
Portugal e no Uruguai – foi o Legislativo que atuou para legalizar e estabelecer
regras para o porte e o uso de drogas ilícitas.
Países como República Tcheca e
Suíça têm regras específicas para maconha, enquanto outros, como a Estônia,
flexibilizam o porte de qualquer substância.
Em países como a Holanda, a
solução foi processual, sendo uma política oficial das autoridades policiais e
de acusação não atuar contra o consumo de pequenas quantidades de drogas.
Há lugares – como em alguns
estados da Austrália e na Itália – em que ser flagrado andando com a droga,
apesar de não ser crime, resulta em sanções administrativas, como multas e
confisco do material. Já na Bolívia e Paraguai, não há sanções previstas.
As origens da liberação, bem
como as minúcias legais, variam bastante ao redor do mundo. O estado atual da
descriminalização é compilado periodicamente pelo projeto Talking Drugs,
mantido pela organização não governamental britânica Release em parceria com a
International Drug Policy Consortium, consórcio internacional formado por 194
entidades, em 75 países, dedicado ao tema das drogas.
Autor:Por
Felipe Pontes - Repórter da Agência Brasil
0 Comentários