Muitos estudos recentes sugerem que a prática de exercícios de resistência em ambientes poluídos pode produzir efeitos indesejados na saúde humana. Mas um trabalho publicado recentemente no American Journal of Physiology por cientistas do Grupo de Estudos em Desempenho Aeróbio da Faculdade de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE/USP) aponta que, talvez, isso não seja verdade para os praticantes já habituados à poluição veicular.
A equipe avaliou dez ciclistas recreativos do sexo masculino, a maior parte deles acostumada a treinar em uma ciclovia e dentro do Campus da Universidade de São Paulo, onde a Agência Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb).
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Resultados de experimento conduzido na cidade de São Paulo foram divulgados no American Journal of Physiology | Léo Ramos Chaves/Pesquisa FAPESP |
A equipe avaliou dez ciclistas recreativos do sexo masculino, a maior
parte deles acostumada a treinar em uma ciclovia e dentro do Campus da
Universidade de São Paulo, onde a Agência Ambiental do Estado de São Paulo
(Cetesb) reporta níveis de poluição veicular que ultrapassam os limites anuais
impostos pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Ao contrário do que se esperava, eles descobriram
que os marcadores de inflamação no sangue desses ciclistas – como as
interleucinas 6 e 10 (IL-6 e IL-10) – não se alteraram. E, por outro lado,
aumentou o nível sanguíneo da proteína BDNF (ou brain-derived neurothophic
factor), relacionada a benefícios do exercício para a neuroplasticidade do
cérebro.
A partir desses resultados, os pesquisadores formularam outra hipótese:
a de que haveria um certo tipo de aclimatação desses indivíduos ao ambiente
poluído. Afinal, são residentes em São Paulo e estão acostumados a treinar em
ambiente aberto. “Assim, podemos dizer que, neste caso, os benefícios do
exercício se sobrepõem aos efeitos deletérios do ambiente poluído”, resume
André Casanova Silveira, primeiro autor do artigo.
Ele explica que o
grupo partiu de dois estudos publicados pelo professor Rômulo Bertuzzi,
coordenador do Grupo de Estudos em Desempenho Aeróbio, nos quais foi usado um
modelo de exercício de carga constante com pessoas fisicamente ativas. Nesses
estudos, Bertuzzi percebeu que havia um aumento dos marcadores inflamatórios
nos praticantes após 60 minutos de exercícios.
“Porém, modelos de exercício de carga constante não
avaliam performance, não mimetizam bem a performance esportiva, são muito diferentes
de uma prova. Assim, idealizamos um experimento com um exercício de longa
duração, que ultrapassasse os 60 minutos e mimetizasse uma competição.”
O estudo foi apoiado pela FAPESP por meio de uma
bolsa de doutorado no Brasil concedida a Silveira.
Poluição ‘real’
O experimento foi
realizado numa câmara localizada no estacionamento da Faculdade de Medicina da
USP (FM-USP), na avenida Doutor Arnaldo, em São Paulo, a 20 metros da beira da
rua e a 150 m de um cruzamento de tráfego movimentado. A câmara foi projetada
pelo grupo do professor Paulo Saldiva (FM-USP), com quem Bertuzzi tem uma
colaboração.
Os ciclistas simularam a participação em uma prova
de 50 km (mais ou menos 1 hora e meia de exercício), contra o relógio.
“Colocávamos a bike do indivíduo no rolo e ele fazia um circuito de realidade
virtual. É uma competição simulada, ele vê uma pista no computador. A pista tem
uma certa pressão, é como se ele estivesse pedalando na rua. Ele pode controlar
a intensidade e mudar de marcha.”
A câmara tem dois dutos por onde entra o ar da rua,
jogado na cabine com a ajuda de uma bomba. Há também um sistema para a
filtragem de material particulado, além de filtros químicos para livrar o ar de
formaldeído, sulfeto de hidrogênio, dióxido de enxofre, óxido de nitrogênio
(NO), dióxido de nitrogênio (NO2) e outros gases que poderiam entrar na câmara.
“Mas o marcador do nosso estudo é o material particulado, que também é o que
mais se usa na literatura.”
Os ciclistas
realizaram o circuito em dois dias distintos, com intervalo de pelo menos 48h.
De forma randomizada, fizeram a prova ou no ambiente poluído (sem filtro), ou
no ambiente com ar filtrado. “A poluição mimetiza uma situação mais real. Os
estudos prévios utilizam motor a diesel para mimetizar a poluição, mas ele gera
uma concentração muito alta de material particulado, e não tem mistura com nada
mais. No nosso caso, é uma poluição real, que está vindo da rua.”
Todos os testes foram realizados com controle de
temperatura ambiente (20 °C a 24 °C) e duas horas após a última refeição. A
coleta de dados ocorreu em 2019, antes da pandemia de COVID-19, entre 10h e
16h. Os marcadores inflamatórios IL-6, proteína C-reativa (CRP), IL-10 e
molécula de adesão intercelular-1 (ICAM-1) e de neuroplasticidade (BDNF) foram
medidos nas amostras de sangue coletadas antes e depois do circuito de 50 km.
Resultados
surpreendentes
A equipe concluiu que
não houve diferenças significativas entre os experimentos realizados em distintas
condições para as respostas dos marcadores IL-6, CRP e IL-10. Entretanto, a
prova realizada sob efeito da poluição veicular provocou aumento nos níveis de
BDNF induzido pelo exercício, bem como redução dos níveis de ICAM-1.
“O aumento nos níveis de BDNF promove o crescimento
e a proliferação de células no hipocampo [fenômeno ligado à formação das
memórias e associado ao aprendizado e às emoções]. O BDNF também está envolvido
na diferenciação neuronal, plasticidade, sobrevivência celular e aprendizado.
Esse aumento nos níveis de BDNF que diagnosticamos em ambiente poluído foi o
resultado mais curioso de nosso trabalho, porque a literatura diz que o
exercício em ambiente poluído suprimiria a expressão dessa proteína. Queremos,
futuramente, além da dosagem do BDNF, fazer também testes cognitivos para ver
se há correlação da exposição à poluição com desempenho e cognição, que
acabamos não fazendo desta vez”, revela Silveira.
Já o ICAM-1 é uma molécula de adesão (que permite a ligação entre
células) relacionada aos processos inflamatórios. “No início do processo de
inflamação há um aumento do ICAM-1 porque é ele que faz a ligação dos
macrófagos (células do sistema imunológico) para as células lesionadas.
Trata-se de um marcador precoce da inflamação, indica o estado inflamatório bem
no início. Em nosso experimento, caso tivéssemos observado um aumento da
inflamação por causa da poluição, o ICAM-1 poderia estar bem expresso no teste
feito em ambiente poluído, e não foi isso o que aconteceu. Mas existe muito
pouco na literatura para que possamos discutir o ICAM-1 e os resultados
referentes a ele, ainda.”
Silveira afirma que a equipe imaginou que haveria
prejuízo da performance do cliclista porque supôs que, em um ambiente poluído,
haveria aumento da percepção subjetiva de esforço. “Na competição, o
participante tem controle da intensidade do exercício pela percepção subjetiva
de esforço, e vai fazendo ajustes ao longo da prova com base nisso. Imaginei
que teríamos aumento dessa percepção de esforço no ambiente poluído causado
pelos sintomas subjetivos da poluição (ardência de olho, nariz escorrendo) e
isso prejudicaria o desempenho, mas isso não se confirmou. Outro ponto
surpreendente foi o dos marcadores inflamatórios porque, como tínhamos estudos
prévios do grupo mostrando que após 60 minutos havia aumento desses marcadores,
imaginamos que numa prova de longa duração, com intensidade mais alta comparada
à prova de carga constante, também haveria aumento. Não ver diferença nesses
marcadores foi surpresa.”
Segundo ele, a maior
conclusão do trabalho é que o exercício faz bem mesmo em ambientes poluídos,
para pessoas adaptadas a esse tipo de ambiente. “Em meu pós-doutorado,
submetido há pouco, pretendo fazer a distinção e separar os grupos menos e mais
expostos à poluição. Quero fazer essa comparação para saber se o nível de
exposição prévia interfere de alguma forma na inflamação, nas adaptações
cardiovasculares e no exercício.”
Autor: Karina Ninni, da Agência
Fapesp
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