"Chegou um ponto [em] que tinha de escolher: pagar o cartão ou ficar sem comer", diz Damiana Araújo dos Santos, desempregada. "Como tenho dois filhos, sinto muito, não posso deixar meus filhos passarem fome para pagar cartão", afirma.
Endividamento no cartão de crédito é recorde nos últimos 8 anos, refletindo a situação econômica do país, que tem sofrido com inflação em alta, renda em queda e desemprego.
![]() |
Apelar para o "rotativo" do cartão acaba gerando um efeito "bola de neve", que só aumenta a dívida. | (Foto: Arquivo/Ag. Brasil) |
Casos como o dela levaram o país a registrar o
maior patamar de dívidas com cartão de crédito em oito anos, refletindo a
dificuldade da população em se manter adimplente em um cenário de inflação
elevada, renda comprimida e busca por emprego.
O chamado "rotativo", acionado quando o consumidor não paga a
fatura completa do cartão até o vencimento, registrou R$ 159,3 bilhões em novos
empréstimos nos seis primeiros meses do ano. De acordo com o Banco Central,
esse é o maior nível para o período desde 2014 - quando foram concedidos R$
174,7 bilhões (na série atualizada pela inflação).
Santos conta que tem quatro cartões e que eles eram
usados sobretudo para comprar alimentos no supermercado. "Fui comprando em
um, pagando o mínimo, passando para o outro, não consegui pagar, parcelei, aí
virou aquela bola de neve", relata.
Quanto ao volume da dívida, diz nem ter mais ideia
do total e evita atender os telefonemas diários de cobrança. "Deve estar
um valor bem alto por conta dos juros, mas não sei dizer", afirma.
Tanto o BC quanto especialistas em finanças
recomendam que o cartão de crédito rotativo seja usado apenas emergencialmente
e por períodos muito curtos. Com taxas de juros elevadas, essa é a linha de
crédito mais cara do mercado.
Em junho, os juros do rotativo atingiram 370,4% ao ano. No acumulado em
12 meses, o aumento da taxa média foi de 41,3 pontos percentuais -bem acima da
escalada da taxa básica (Selic), que saiu da mínima histórica de 2% em 2021 até
o atual patamar de 13,75% ao ano.
Nem o aumento dos juros tem freado novos
empréstimos nessa modalidade, diferentemente de outros períodos. Ao menos agora
a população não fica indefinidamente no rotativo.
A armadilha do
crédito parcelado
Desde abril de 2017, os bancos são obrigados a
transferir após um mês a dívida do rotativo para uma linha de crédito
parcelado, que tem taxas mais baixas.
Especialistas destacam que a mudança da norma atenuou o efeito
"bola de neve", mas que ninguém deve ter como objetivo buscar o
crédito parcelado porque os juros - embora mais baixos que o do rotativo -
também são altos. Em junho, a taxa média total nessa modalidade ficou em 173,2%
ao ano.
O BC alertou na ata da última reunião do Comef
(Comitê de Estabilidade Financeira), divulgada na quinta-feira (8), que o
crescimento do crédito em modalidades com maiores riscos indica uma tendência
de aumento da inadimplência, ainda que dentro de padrões históricos.
"No caso das famílias, o aumento de ativos
problemáticos tem superado o crescimento da carteira de crédito. Essa tendência
deverá permanecer com o crescimento do crédito em modalidades mais
arriscadas", escreveu a autoridade monetária em nota.
De acordo com Ricardo Teixeira, coordenador do MBA
de Gestão Financeira da FGV (Fundação Getulio Vargas), a perda de poder de
compra frente à inflação elevada é um dos fatores para o aumento da
inadimplência.
"Durante o período da pandemia, muitas famílias passaram por
dificuldades, algumas pessoas perderam emprego, o que também pressiona a
economia doméstica", acrescentou.
O especialista descreve que muitas dívidas são
contraídas quando há o empréstimo do crédito para amigos e familiares que estão
passando por dificuldades financeiras. "Mesmo que essa pessoa venha a
pagar os juros depois, é o titular do cartão que está usando o rotativo",
disse.
Despesas com o
"novo normal"
No caso das famílias de classe média, Teixeira cita
o aumento das despesas devido ao "novo normal". Segundo ele, com o
home office e o trabalho em formato híbrido, as famílias tiveram maiores gastos
com alimentação no domicílio e equipamentos, e ainda viram a fatura da energia
elétrica subir. As contas domésticas ficaram ainda mais pressionadas nos lares
com crianças e adolescentes, que passaram a ter aulas por meio de plataformas
digitais.
Amanda Rapouzo, diretora da Serasa eCred, destaca que "uma das
maiores dívidas do brasileiro é com cartão de crédito". Quanto ao perfil
de pessoas com nome negativado, diz que a maior parcela é composta por jovens
de 25 a 35 anos, com renda de um a dois salários mínimos, e gasto médio de R$
3.000.
Segundo Rapouzo, as melhores alternativas para
fugir da linha de crédito mais cara do mercado são os empréstimos com garantia
ou empréstimo com antecipação do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço).
Os eleitores endividados estão na mira dos
candidatos à Presidência da República no pleito de 2022. A campanha do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) elabora um programa para
viabilizar a renegociação de dívidas, como contas de luz e água, de famílias de
baixa renda e de parcela da classe média.
Ciro Gomes
(PDT), que está em terceiro lugar nas pesquisas de intenção de voto, mantém em
seu programa uma proposta apresentada na campanha de 2018 de limpar o nome dos
brasileiros do SPC/Serasa, com taxas de juros menores e prazos mais longos de
pagamento.
Nathalia Garcia/Folhapress
0 Comentários