Ao se colocar como alternativa à presidência, o
vice-presidente Michel Temer preparou um documento sobre quais seriam
as linhas gerais seguidas em um suposto governo de substituição à presidente
Dilma Roussef. O documento se chamou “Uma ponte para o futuro”. Este texto
procura apresentar criticamente suas principais propostas e desenhar um
possível cenário, caso a hipótese de impedimento da presidente venha a se
verificar.
“Uma ponte para o futuro” realiza inicialmente um diagnóstico da
situação do país. Primeiro, haveria um grave desequilíbrio causado pelos
benefícios criados pela Constituição de 1988. Segundo, como a carga tributária
é elevada, uma solução pelo aumento dos impostos estaria inviabilizada.
Terceiro, existiria grande dificuldade de redução de despesas que resultam de
obrigação constitucional.
O Ajuste Fiscal
Segundo o documento, os dispositivos de gastos em educação, saúde e
assistência social seriam até virtuosos, mas, somados a outras despesas
obrigatórias não virtuosas, que incluem a Previdência Social, tornariam
necessária uma forte reestruturação, alterando dispositivos constitucionais e
legais.
Em termos orçamentários, o projeto do Vice-presidente propõe:
I – fim de todas as vinculações obrigatórias do Orçamento a despesas
específicos (incluindo as virtuosas);
II – criação do orçamento impositivo, ou seja, o orçamento votado no
congresso deve ser obrigatoriamente executado em sua integralidade, sem
contingenciamento;
III – fim de todas as indexações, seja para salários, seja para benefícios
previdenciários, seja para qualquer gasto;
IV – criação do orçamento de base zero, que significa a revisão de todos
os itens orçamentários a cada legislatura, ou seja, a possibilidade de
descontinuidade anual de qualquer programa; e
V – um dispositivo que impossibilita o aumento das despesas acima do
crescimento do PIB.
A primeira percepção que emerge da leitura das propostas de ajuste é uma
tentativa de deslocamento de poder do Executivo para o Legislativo. Escrito em
outubro de 2015, em um cenário político conturbado, com o governo enfraquecido,
percebe-se que existe uma tentativa de assegurar aos congressistas que suas
emendas orçamentárias terão de ser executadas. É possível especular que o
objetivo era assegurar aos congressistas, próximos a votar um impedimento,
estariam frente a uma oportunidade de ganhar poder na definição de recursos de
acordo com seus desejos, que não poderiam mais ser alvo de contingenciamento
governamental.
Sob o ponto de vista econômico, as medidas sugeridas parecem conduzir,
no entanto, à redução dos gastos sociais. A desvinculação das despesas é um dos
instrumentos, o outro é o fim das indexações, que afeta principalmente a
Previdência Social, objeto de análise específica mais adiante. Uma rápida
avaliação nas despesas que sofreriam desvinculação permite concluir que, salvo
algumas exceções que poderiam ser citadas nominalmente se fossem os únicos
alvo, apenas recursos
destinados à Saúde, Previdência, Educação e salários sofrerão os cortes
propostos.
A segunda consequência econômica é a proibição institucional de
políticas keynesianas. Ao fixar que o gasto governamental não poderá crescer
mais do que o PIB, o vice-presidente está definindo o fim da possibilidade de
se realizar políticas anticíclicas. Tradicionalmente, os gastos governamentais
representam um papel anticíclico. Economistas keynesianos e ortodoxos vêm
debatendo questões em torno do tema desde a publicação da Teoria Geral do
Emprego, Juro e Moeda, em 1936. Está longe de haver consenso, mas nunca, desde
os anos 1930, o pêndulo esteve tão a favor dos seguidores de Keynes. Até mesmo
o sisudo Fundo Monetário Internacional apresentou uma mudança no seu
entendimento sobre o assunto, propondo políticas fiscais mais frouxas, após a
crise de 2008. O entendimento do vice-presidente é, no entanto, que devemos
proibir legalmente políticas que, frente a uma queda do PIB, possam atenuar os
efeitos recessivos.
Surge, então, um primeiro conjunto de questões: será que é razoável dar
esse importante passo, que produziráengessamento das políticas públicas, a
partir da retirada de uma presidente que foi legitimamente eleita com um
programa oposto e a indicação quase que biônica de um presidente alternativo?
Será que medidas tão drásticas quanto essas não deveriam ser alvo de uma
Constituinte?
Previdência Social
Uma ponte para o futuro dá especial ênfase à Previdência. Essa atenção é
justificada devido ao crescente déficit do INSS e à elevada parcela do PIB
dedicada a este item do Oaçamento. De acordo com os argumentos expostos, o
Brasil teria cerca de 12% do PIB dedicados à Previdência, parcela semelhante a
França e Alemanha, que têm uma pirâmide demográfica mais envelhecid –, e o
dobro de EUA e Japão.
O documento, então, propõe:
I – aumento da idade mínima de aposentadoria para 60 anos, para
mulheres, e 65, para homens; e
II – fim da indexação dos benefícios da Previdência ao salário mínimo.
Com respeito a esse ponto é importante ressaltar que cerca de 60% dos
beneficiários da Previdência recebem o piso do salário mínimo. A retirada da
indexação implicaria uma perda real significativa para um número razoavelmente
grande de famílias (cerca de 30% das famílias recebem rendimentos
previdenciários). É fundamental lembrar que, em média, o crescimento e melhor
distribuição dos rendimentos da Previdência Social são responsáveis por cerca
de um quarto da redução da desigualdade no Brasil. As mudanças na indexação no
piso salarial estarão na contramão deste processo. Além disso, deve-se ponderar
que, se o salário mínimo tem um valor em termos de dignidade humana (artigo
primeiro da Constituição Federal), o que se pode pensar em termos de valores
sociais sobre esse tipo de medida?
O aumento da idade de aposentadoria toca em um ponto relevante que
entendo deva ser pensado pela sociedade. Trata-se da divisão intergeracional da
renda. Não teria uma oposição inicial à medida, embora, mais uma vez e sempre,
entenda que isso deve ser uma discussão social e não uma medida tomada a partir
da assunção do poder indiretamente por alguém cujo programa não foi submetido a
escrutínio.
É de se notar, contudo, uma grande omissão. Um dos vários equívocos do
governo Dilma foi a desoneração da folha de pagamento, que provocou, em 2014,
uma redução de cerca de R$ 20 milhões na arrecadação de impostos. Não há uma
palavra do vice-presidente sobre esse tema. É de se especular quando entidades
empresariais desenham ou copiam figuras de pato, quem serão os verdadeiros
patos de um possível governo Temer.
A Agenda para o Desenvolvimento
A parte final do documento apresenta uma agenda de desenvolvimento
fortemente baseada na liberalização dos mercados (ou quase). As principais
medidas podem ser divididas em quatro grupos. Primeiro, há elementos que,
creio, todos concordariam e que não foram realizados por impossibilidade de
negociação parlamentar ou por falta de capacidade técnica de montagem de uma
agenda de discussões. Nesse caso, a “Ponte para o Futuro” propõe a melhoria do
ambiente de negócios com a simplificação do sistema tributário e redução dos
obstáculos à abertura e ao fechamento de empresas; atenção à gestão das
empresas públicas e das agências reguladoras, entre outros pontos de menor
importância. Ensaia o que seria uma continuidade da política de inovação ao
“dar alta prioridade à pesquisa e o desenvolvimento tecnológico que são a base
da inovação”.
Segundo, argumenta pela necessidade de se realizar com celeridade uma
“abertura comercial que torne nosso setor produtivo mais competitivo, graças ao
acesso a bens de capital, tecnologia e insumos importados”. Essa abertura
deveria ser acompanhada pela assinatura de acordos regionais, já em andamento,
que melhorariam o acesso de produtos tupiniquins aos mercados da Ásia e da
América do Norte. Além do mais, argumenta que o realinhamento do câmbio
auxiliaria essa transformação.
A terceira frente seria “executar uma política de desenvolvimento
centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se
fizerem necessárias”, inclusive na área de petróleo, que retornaria à regulação
que vigorou previamente à descoberta do pré-sal.
A quarta iniciativa seria a alteração da Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT),
permitindo que as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais, salvo
quanto aos direitos básicos. Neste aspecto, merece também destaque uma frase
contida no documento, em que se afirma que, em contrapartida ao novo sistema
público sem indexação, “novas legislações procurarão exterminar de vez os
resíduos de indexação de contratos no mundo privado e no setor financeiro”. O
principal contrato do “mundo privado” é o de trabalho e creio ser essa uma
maneira indireta de se afirmar que se alterará a regra de reajuste do salário
mínimo.
Cabe notar uma importante ausência, tanto nos comentários da política de
desenvolvimento, quanto nos referentes ao ajuste fiscal: a desoneração
tributária à indústria por intermédio do IPI e outros procedimentos. (Olha o
pato outra vez na área). A desoneração de impostos no total (incluindo a da
folha de pagamento) representou, em 2014, R$ 88 bilhões de redução na
arrecadação da União. Nenhuma palavra sobre isso no documento: nem sobre as
medidas que poderiam vir a ser virtuosas, nem sobre alguns estrondosos erros do
governo Dilma.
A agenda de desenvolvimento merece comentários. Na parte inicial,
mudanças no ambiente de negócios estão longe de conduzir a uma trajetória clara
de desenvolvimento. A evidência empírica não parece ser conclusiva a esse
respeito, principalmente porque existem endogeneidades que são difíceis de
controlar. Mais importante, acreditar na simplificação do sistema tributário
com as divergências de interesses encontradas entre os entes federativos está
mais próximo da montagem de uma agenda natalina, do que propriamente de
desenvolvimento.
A proposta de abertura do mercado doméstico está na mesa desde o início
do processo de redemocratização do Brasil. O governo Collor fez um esboço de
uma política de redução da proteção e os governos Itamar e FHC realizaram uma
importante modificação nesse cenário, estabelecendo regras transparentes para
tarifas e permitindo a entrada de bens importados em todos os segmentos da
economia. Os governos Lula e Dilma mantiveram as principais características do modelo,
ainda que tenham implantado, em alguns setores, políticas de conteúdo local,
bem-sucedidas em alguns casos, nem tanto em outros. De fato, quando se examinam
as empresas, aquelas que mais importam insumos e equipamentos tendem a ter
melhor desempenho e as exportadoras tendem a ser mais eficientes. Contudo,
é wishful thinking pensar que a
mera redução tarifária ou a suspensão de políticas de conteúdo local somadas à
recente desvalorização cambial implicarão crescimento das exportações. A
abertura de mercados impõe um novo e mais agressivo ambiente seletivo às
empresas. Os impactos sobre emprego e renda no curto prazo estão longe de ser
positivos. Um ano após a forte desvalorização de 2015, não se verifica mudança
nas exportações. As estimativas de elasticidade preço e câmbio de nossas
exportações estão longe de ser otimistas. Ademais, apesar da abertura promovida
por Itamar e FHC ter afetado os segmentos de comerciáveis no Brasil, a
estrutura industrial pouco se alterou além da provocação de uma onda de fusões
e aquisições que internacionalizou ainda mais a nossa indústria. Nesse sentido,
a experiência ensina que mesmo no longo prazo os efeitos podem não ser os
desejados.
O tema da privatização parece ser um pouco mais perigoso e, nesse caso,
o escrutínio público é fundamental. Toda vez que foi tema de eleição, a
população escolheu contra a privatização. No setor financeiro, Banco do Brasil,
Caixa Econômica e BNDES tiveram um papel central na reversão da crise, entre
2009 e 2010. São instrumentos importantes de política econômica. Não parece
razoável privatizá-los. Na área do petróleo, o retorno do marco regulatório ao
sistema de concessão está longe de ser dano. No entanto, a privatização da
Petrobras não parece ser convidativa. A Petrobras tem grande contribuição ao
desenvolvimento tecnológico do Brasil. Parece claro que provedores da Petrobras
têm melhor desempenho do que seus pares e os testes de causalidade, na medida
em que se aperfeiçoam, tendem a ressaltar o seu papel.
O ponto mais perigoso da agenda de desenvolvimento são as mudanças
preconizadas para o mercado de trabalho. No que tange às mudanças na CLT,
parece claro que o documento caminha na direção de reduzir a remuneração
daqueles que percebem até três salários mínimos. Calcula-se que 50% da melhoria
na distribuição de renda se devem à melhor distribuição da renda laboral. Dois
elementos tiveram papel importante nessa trajetória: a regra do salário mínimo
e a redução do bônus da qualificação. Cabe lembrar que o país ainda mantém um
dos maiores bônus à qualificação do mundo. A liberalização do mercado de
trabalho, somada à desvinculação do salário mínimo à regra existente, tende a
aumentar esse bônus. Os aspectos distributivos tendem a ser danosos. Mais uma
vez, trata-se de uma forte reversão de trajetória.
A Economia Política do Impedimento
Em seu “Aspectos
Políticos do Pleno Emprego”, Michal Kalecki, um dos grandes
economistas do século XX, enuncia o principal limite das políticas econômicas
que visam ao pleno emprego. Segundo ele, apesar do sucesso de políticas de
dinamização da economia, a oposição dos “líderes da indústria” a essas
políticas emergiria por três razões: “(i) não gostam da interferência do
governo no problema do emprego como tal; (ii) não gostam da direção dos gastos
do governo (o investimento público e o consumo subsidiado); (iii) não gostam
das mudanças sociais e políticas resultantes da manutenção do pleno emprego”.
No primeiro caso, ressalta que a rejeição às políticas tem origem na possível
perda de influência que esses “líderes da indústria” teriam, em razão da perda
de importância relativa do investimento privado para a manutenção do nível de
atividade. “A função social da doutrina das ‘finanças saudáveis’ é fazer com
que o nível de emprego dependa do estado de confiança”. No segundo caso, a
oposição ao consumo subsidiado adviria do fato de que “os fundamentos da ética
capitalista requerem que ‘você deve ganhar o seu pão no suor’, a menos que você
tenha meios privados”. O terceiro caso é, no entanto, aquele que merece maior
ênfase do autor. De acordo com ele, o elevado nível de atividade resultaria em
busca de ganhos salariais e maior poder de barganha dos trabalhadores, podendo
implicar greves. E a disciplina das fábricas seria algo de que os patrões não
estariam dispostos a abrir mão. O texto de Kalecki,
escrito em 1943, prossegue afirmando que o fascismo foi uma maneira de
autorizar as políticas de estímulo ao nível de atividade, mantendo a disciplina
do chão da fábrica.
Essas características estavam presentes em 2013/14, quando se discutia a
eleição presidencial. O nível de atividade pressionava o chão das fábricas; as
políticas de transferência de renda eram condenadas por importantes segmentos
empresariais e pela classe média, com base em princípios éticos parecidos com
os presentes no texto de Kalecki, (lembrem-se do “dê uma vara e ensine a
pescar”); e o investimento público aparentava ter pujança para retomar um papel
que representou anteriormente, na década de 1970, quando a mediação autoritária
permitia o convívio de alto grau de atividade e pressão sobre os salários
reais, mantendo elevada desigualdade. No entanto, agora não havia o regime
autoritário para manter a disciplina. Estava montado o cenário para o início de
pregação da doutrina das “finanças saudáveis”. Assim, o segundo e fragilizado
governo Dilma iniciou o caminho à redução do nível de atividade, mas, para
esses líderes da indústria (ou capitães da indústria, conforme tradução
brasileira – por que não coronéis?), não seria o suficiente.
O impedimento da presidente se dá, então, sob esse clima e com uma
agenda de mudança por parte da oposição que implica assegurar que não haverá
espaço para outra vez se adotarem políticas anticíclicas no país. Enfim,
olhando o resumo da obra, a ponte para o futuro parece mais um túnel escuro
para aqueles que um dia sonharam com uma sociedade mais igualitária e sem
pobreza. Trata-se de uma ponte para o passado e um passo para o abismo. Cuidado
com a ciclovia que ameaça desabar.
Fonte : pragmatismopolitico.com.br
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