Em abril passado, Veja publicou
uma reportagem que começava assim: “Maria Aparecida Firmo Ferreira tem 79 anos,
é cardíaca, sofre de Parkinson, locomove-se com dificuldade e mora num casebre
que fica na parte mais miserável de Brasília — a favela Sol Nascente, conhecida
pela violência, dominada pelo tráfico de drogas e conflagrada por facções que
usam métodos similares aos das milícias cariocas. Sem se preocupar com tudo
isso, dona Aparecida, como é conhecida, enfrenta uma odisseia diária.
Aposentada, ela divide seu tempo entre cuidar de um filho deficiente auditivo,
ir ao posto de saúde buscar remédios e bater papo com os vizinhos. (…) Ninguém,
ou quase ninguém da vizinhança, sabe que ela é avó da primeira-dama Michelle
Bolsonaro. A neta agora famosa, o presidente da República e a pobreza são
assuntos que parecem despertar sentimentos conflitantes em dona Aparecida. Faz
mais de seis anos que ela não vê a neta que ajudou a criar. A avó não foi
convidada para a posse, nem ela nem sua filha, mãe de Michelle, Maria das
Graças. Passados três meses de governo, ela não recebeu convite para uma visita
ao Palácio da Alvorada, a residência oficial, que fica a apenas 40 quilômetros
da favela. Por quê? Ela diz que não sabe responder”. Na última semana, o jornal
Folha de S.Paulo publicou uma nova reportagem mostrando que Maria Aparecida, a
avó, estava internada fazia dois dias no corredor de um hospital público de
Brasília, aguardando vaga para realizar uma cirurgia ortopédica. Sem nenhuma
assistência da neta, ela sofria sozinha a dor pela fratura da bacia.
Pois o que parecia um
desprezo profundo da primeira-dama com a família de origem humilde esconde, na
verdade, problemas bem mais complexos. Dona Aparecida, a avó, nem sempre foi a
pessoa de saúde frágil e indefesa que hoje cobra um pouco de atenção da neta.
Antes de se aposentar, ela tentou ganhar a vida traficando drogas. Veja localizou
nos arquivos da 1ª Vara de Entorpecentes e Contravenções Penais do Distrito
Federal o processo que detalha o dia em que Maria Aparecida Firmo Ferreira,
então com 55 anos, foi presa em flagrante. Em 1997, a avó da primeira-dama era
conhecida nas ruas como “Tia” e, segundo a polícia, sua principal atividade era
vender drogas no centro de Brasília. Em julho daquele ano, ela foi surpreendida
com 169 “cabecinhas de merla”, um subproduto da cocaína. No auto de prisão, ao
qual Vejateve acesso, os policiais contaram ter recebido uma
denúncia anônima de tráfico numa região que fica a apenas 3 quilômetros do
Palácio do Planalto. Ao chegarem ao local indicado, eles encontraram Aparecida.
Dentro de uma sacola que ela carregava, além da “merla”, estavam dois relógios
e dezesseis vales-transporte. Na delegacia, ela confessou o crime.
No depoimento que
prestou, a avó da primeira-dama contou que cada pacotinho da droga era vendido
a 5 reais. Na Justiça, ela mudou a versão. Alegou que a sacola apreendida não
era sua e que teria confessado o crime por pressão dos policiais. Havia, porém,
testemunhos de clientes. Aparecida acabou condenada a três anos de reclusão, em
regime fechado. A defesa ainda recorreu, sem sucesso. Uma das desembargadoras
que votaram contra a libertação foi Sandra de Santis, esposa do ministro do
Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello. No processo, ao qual Veja também
teve acesso, a avó da primeira-dama, depois de condenada, escreveu uma carta ao
juiz confessando o crime e pedindo clemência: “É certo que transgredi a lei,
mas o preço altíssimo que pago por meu delito transformou-se completamente. Sou
uma senhora de princípios renovados”, dizia.
Na penitenciária feminina
do Gama, onde foi cumprir a pena, Maria Aparecida mostrou que os seus
princípios não estavam tão renovados assim. Em maio de 1999, quando já estava
presa havia um ano e oito meses, tentou subornar um agente, oferecendo-lhe
dinheiro para que a levasse até sua casa. O plano era o seguinte: ela fingiria
que estava doente, a direção do presídio autorizaria sua ida a um hospital e,
no caminho, a guarda desviaria a rota, permitindo que Maria Aparecida fizesse
uma visita à família. Por causa dessa infração, ela ficou na solitária e teve
os benefícios de progressão de pena suspensos — e só deixou a penitenciária, em
liberdade condicional, em agosto de 1999, depois de cumprir dois anos e dois
meses de cadeia. Sua punição foi oficialmente considerada extinta em 2000.
Na reportagem publicada
em abril, Maria Aparecida contou ter ajudado a criar Michelle, reclamou da
ausência da neta e lamentava não ter sido sequer convidada para a cerimônia de
posse do presidente Bolsonaro — nem ela nem a filha, Maria das Graças, a mãe de
Michelle. O passado, confidencia um familiar da primeira-dama, também deixou
marcas na relação entre mãe e filha. Maria das Graças igualmente esteve na mira
da Justiça. Em 1988, quando Michele tinha 6 anos, a polícia descobriu que sua
mãe possuía dois registros civis — um verdadeiro e o outro falso. De acordo com
o primeiro, o verdadeiro, Maria das Graças Firmo Ferreira nasceu no dia 11 de
junho de 1959, tinha 1,60 metro e era filha de Ibraim Firmo Ferreira. No outro,
o falso, não havia o nome do pai, o da mãe fora alterado (de Maria Aparecida
Mendes para Maria Aparecida Firmo Ferreira), ela ficara nove anos mais nova (o
ano de nascimento passou para 1968) e sua altura tinha aumentado em 13
centímetros (1,73 metro). Tratava-se, portanto, de outra pessoa.
A então Delegacia de
Falsificações e Defraudações de Brasília instaurou inquérito policial para
investigar Maria das Graças. Os agentes apuraram que a mãe da primeira-dama
havia solicitado a segunda identidade oito anos depois de obter a primeira.
Para isso, usou uma certidão de nascimento adulterada expedida no município de
Planaltina de Goiás, distante 440 quilômetros do local onde ela realmente
nasceu e foi registrada (Presidente Olegário, em Minas Gerais). A fraude foi
constatada quando a polícia comparou as impressões digitais dos dois
prontuários de identificação arquivados na Secretaria de Segurança e descobriu
tratar-se da mesma pessoa. Intimada a depor, Maria das Graças contou que
perdera a carteira de identidade e a certidão de nascimento. Ao fazer um novo
registro civil, decidiu excluir o nome do pai, porque ele “abandonou a
família”, e, “aconselhada por duas amigas”, também alterou a data do seu
nascimento — mas nada disso tinha nenhuma “intenção criminosa”, segundo ela.
Maria das Graças usou a
certidão de nascimento adulterada para emitir um novo CPF. Não há no inquérito
informações sobre eventuais negócios ilícitos realizados por ela com os
documentos falsos. Em 1989, o Ministério Público remeteu o inquérito para a
Justiça. Maria das Graças foi indiciada por falsidade ideológica, que prevê
pena de até cinco anos de prisão em regime fechado, porém, em 1994, depois de
ficar mais de cinco anos parado na Vara Criminal, o processo foi arquivado. O
juiz responsável pelo caso justificou a decisão argumentando que o crime estava
prescrito. Procurada por Veja, a mãe de Michelle apresentou uma
nova versão para a história: “Isso aí foi um negócio que meu pai tinha arrumado
para mim. Não quero mexer com isso, não quero falar sobre isso”. Ibraim Firmo,
o pai, foi assassinado em 2015.
Veja apurou
com familiares da primeira-dama que o distanciamento entre ela, a mãe e a avó
se deu justamente por causa desses problemas do passado. Um parente que pediu
anonimato contou que, pouco depois de Jair Bolsonaro decidir concorrer à
Presidência, Michelle procurou a mãe para que ela resolvesse pendências que
ainda existiam sobre sua documentação. Ofereceu ajuda, mas Maria das Graças
recusou, e as duas se afastaram. A mãe nega qualquer entrevero com a filha. “Eu
não vou lá (no Palácio da Alvorada) porque não gosto de palácios e, para a
Michelle vir aqui, é muita gente para vir junto e fica tudo muito difícil”,
diz. “Estamos ótimas, é tudo mentira, fofoca.”
Rolos com a Justiça têm
sido uma tradição familiar. João Batista Firmo Ferreira, sargento aposentado da
Polícia Militar de Brasília, foi um dos poucos familiares de Michelle
convidados para a cerimônia de posse do presidente Bolsonaro. É — ou era — o
tio preferido da primeira-dama. Em maio passado, no entanto, ele foi preso, sob
a acusação de fazer parte de uma milícia que age na Sol Nascente, onde mora com
a mãe, Maria Aparecida, a avó de Michelle. De acordo com o Ministério Público,
João Batista e mais sete PMs participariam de um esquema ilegal de venda de lotes
na favela. Um delator contou que os policiais atuavam como o braço armado da
quadrilha, dando suporte ao negócio irregular através de ameaças e até
eliminação de desafetos. O sargento está preso na penitenciária da Papuda, em
Brasília.
O processo que apura a
ligação do ex-policial com a milícia da Sol Nascente tramita em segredo de
Justiça. Os advogados do PM dizem que o envolvimento dele no caso é um grande
mal-entendido. João Batista, de acordo com essa versão, teve a prisão decretada
após uma improvável coincidência. Ele construiu uma casa e tentava vendê-la. Um
policial amigo indicou um comprador. Esse amigo, porém, estava sendo monitorado
pelo Ministério Público. As conversas entre os dois foram gravadas e, para os
investigadores, elas comprovariam que João Batista e o colega estavam vendendo
lotes irregulares e dividindo as comissões. Logo depois de fechado esse último
negócio, inclusive, foi realizada uma transferência de dinheiro da conta de
João Batista para a do policial. De acordo com os advogados, o depósito seria
uma comissão pela corretagem. Essa versão, no entanto, não convenceu a Justiça.
No mês passado, a defesa
de João Batista ingressou com um pedido de relaxamento da prisão preventiva,
alegando que o sargento tem bons antecedentes e residência fixa. O juiz do
caso, no entanto, ressaltou que a gravidade das condutas dos policiais apuradas
pelos investigadores, entre elas participar de organização criminosa,
justificava a manutenção da prisão — e negou o pedido. Pessoas próximas ao sargento
contaram a Veja que o fato de ser parente de Michelle
Bolsonaro não ajudou em nada a situação dele, muito pelo contrário. Na cadeia,
detido há quase noventa dias numa área da penitenciária reservada a policiais,
João Batista não recebeu a visita nem tipo algum de ajuda ou solidariedade de
ninguém da família.
Procurada, a
primeira-dama não quis se pronunciar sobre os familiares. No governo, Michelle
vem desempenhando um bom papel, ocupando o cargo de presidente do conselho do
Programa Nacional de Incentivo ao Voluntariado, órgão responsável por projetos
na área social. Depois da publicação da reportagem da Folha sobre a avó, dona
Maria Aparecida foi transferida para outro hospital e operada. A Secretaria de
Saúde do Distrito Federal informou que não houve interferência alguma do
Palácio do Planalto na mudança. Questionado sobre o caso e fiel ao seu estilo,
o presidente Bolsonaro classificou o episódio todo como uma baixaria. De fato,
é. Agora, entende-se a distância que a primeira-dama, tão ciosa de sua imagem e
preocupada com causas sociais, impôs aos enrolados membros de sua família.
Fonte: Veja.com
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