“Fica calmo que vamos sair dessa e tudo vai passar”. Foi essa a frase escutada por Pedro Ernesto Martinez quando tinha apenas 17 anos e acordava de uma dolorosa cirurgia de raspagem de pele após ter diversas partes de seu corpo queimadas por álcool. O líquido era usado para acender o carvão durante um churrasco com família.
O autor da frase foi uma outra
vítima de queimadura. “A situação dele era pior do que a minha. Ele estava com
o corpo todo coberto de curativos, deixando à vista apenas um de seus olhos.
Mesmo assim, tentava me passar uma mensagem de otimismo. Foi marcante”, lembra
Pedro Ernesto.
Acidentes do tipo fazem
milhares de vítimas a cada ano no país. Diante dessa situação alarmante, o
Poder Público proibiu, desde 2002, a venda de álcool líquido com percentual
igual ou superior a 54 GL em estabelecimentos comerciais como supermercados e
farmácias.
A medida, no entanto, foi
temporariamente revogada, em 2020, durante a pandemia de covid-19, uma vez que,
na época, o álcool usado para a higienização de mãos e objetos ajudava a evitar
a disseminação do vírus.
O prazo final previsto pela
Agência Nacional de Vigilância Sanitária para a comercialização de álcool
líquido é o dia 29 de abril. “A partir daí, a disponibilidade será apenas em
outras formas físicas, como gel, lenço impregnado, aerossol”, explica a Anvisa.
Churrasqueiras e fogueiras
De acordo com o Ministério da
Saúde, são registradas cerca de 150 mil internações por ano, em decorrência de
queimaduras. Com base em levantamentos e consultas com participação da
sociedade, a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa) explica que, em geral, a situação mais perigosa
envolvendo queimaduras está relacionadas ao uso do álcool no momento em que as
pessoas acendem churrasqueiras e fogueiras.
“No gerenciamento de risco são
considerados vários fatores para se avaliar o potencial perigo de um produto
para o ser humano. No caso do álcool, um desses fatores é a facilidade de
espalhamento do produto antes e durante a combustão quando em estado líquido, o
que é inversamente proporcional quando com viscosidade. Assim, quando há
acidente com o álcool na forma física líquida, a extensão e o dano à pele são
grandes”, informou a agência.
Foi exatamente o que aconteceu
com Pedro Ernesto. “Tudo aconteceu muito rápido. Foram 10 ou 15 segundos que
mudaram minha vida, inclusive prejudicando meus estudos, porque isso aconteceu
no ano em que eu deveria me preparar para os exames visando a entrada na
universidade”, disse, referindo-se ao acidente ocorrido no dia 2 de fevereiro
de 2014.
“Eu estava jogando sinuca. Ao
ver meu tio usando álcool para acender o carvão, fui na direção dele para
avisar que isso era perigoso. Não deu outra. Ao virar a garrafa para tentar
reativar o fogo quase apagado, a chama subiu pelo fio de álcool e explodiu,
espalhando o fogo por todos os lados”, lembra Pedro Ernesto.
O acidente aconteceu quando ele
estava a meio metro da churrasqueira. “Lembro de ter usado as mãos para
proteger meu rosto. Após alguns segundos, senti minha perna queimando. Meu
calção estava em chamas. Jogaram então água para apagar o fogo. Foi quando
olhei para minhas mãos e vi a pele toda retorcida. Foram segundos de total
desespero”, acrescentou o jovem, que sofreu queimaduras de terceiro grau nas
mãos, nos antebraços e nas coxas; e de segundo grau na barriga.
Após um mês de internação,
Pedro foi para casa, onde foram necessários outros dois meses de tratamento
dolorido e caro, uma vez que cada placa de metal utilizada para cobrir a pele
custava mais de R$ 1,5 mil.
“São feridas que demoram muito
a cicatrizar. Muita dor mesmo, porque era necessário machucar com raspagens
para sarar. Eu chorava pedindo mais morfina para aliviar a dor, principalmente
nos momentos posteriores às quatro cirurgias que fiz”, descreveu o jovem de 27
anos, que trabalha atualmente como bartender, especialista em preparar drinks
alcoólicos e não alcoólicos, no restaurante Capincho, em Porto Alegre.
Supermercados querem vender
A retirada de álcool líquido
das prateleiras de supermercados foi criticada pela Associação Brasileira de
Supermercados (Abras). A entidade reivindica, junto à Anvisa, que a medida seja
revista, sob o argumento de que “o consumidor já se acostumou a comprar [o
produto] não só em farmácias, mas em supermercados de todo o Brasil”.
Segundo a Abras, “a proibição
da comercialização retirará do consumidor o acesso ao produto de melhor relação
custo-benefício, comprovadamente eficaz nos cuidados com a saúde, na sanitização
de ambientes e na proteção contra doenças, incluindo a covid-19”.
Em nota, o vice presidente da
entidade, Marcio Milan, argumenta que “os consumidores se adaptaram e adotaram
a prática comum de compra do álcool líquido 70% para higienização de ambientes
em casa e no trabalho, pois o setor supermercadista fez uma campanha
bem-sucedida de orientação e esclarecimentos que proporcionaram um
comportamento sensato e seguro destes sanitizantes, sem o registro de
contingência ou acidentes desde a liberação da comercialização pela Agência em
2022”.
A Abras acrescenta que, desde a
autorização da Anvisa em 2022, mais de 64 milhões de unidades de álcool líquido
70% foram comercializadas pelos supermercados. “O setor tem observado que o
consumidor mantém a preferência pelo álcool 70% na forma líquida por não deixar
resíduos em móveis e objetos”.
Quem sentiu literalmente na
pele o problema de liberar a comercialização de álcool líquido tem posição bem
diferente da manifestada pela Abras. “Sou 100% favorável à proibição da venda,
na forma como é feita. É um produto extremamente perigoso que não pode ser tão
acessível, mesmo que sejam feitas campanhas de conscientização sobre seu
correto manuseio”, alerta Pedro Ernesto, que hoje carrega umas poucas manchas e
alguns vazios de pelos na perna.
Superação
“Foi uma experiência muito
ruim, mas me trouxe muitos aprendizados sobre como encarar a vida. Hoje estou
sempre na busca por coisas que me fazem feliz. Passei a enxergar melhor o que é
a felicidade. E, nos momentos em que estou mal, sinto mais facilidade de
encarar os problemas. Nessas horas, lembro que já encarei muita coisa pior. E
lembro novamente daquele cara coberto de ataduras dizendo que tudo vai passar”,
completou.
Mágoa com o tio que causou o
acidente? “Nenhuma. Muito pelo contrário. Hoje estamos muito mais próximos e
amigos. Foi um acidente, mas foi também ponto de partida para muitos
aprendizados.”
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