Tradicionalmente, é a data que marca o fim da folia e o início de um tempo de recolhimento — como se fosse necessária uma fronteira entre a festa da carne e o período de penitência chamado de quaresma. Para católicos praticantes, a Quarta-Feira de Cinzas é uma celebração rica em significado e necessária para a preparação rumo à Páscoa, 40 dias mais tarde.
'Quarta de Cinzas', aquarela de Julian Fałat, feita no século 19© Domínio Público
Nas missas, há um momento em
que o padre e seus ministros abençoam cada um colocando um pouquinho de cinzas
sobre a cabeça ou fazendo uma cruz na testa. Há duas possibilidades de frase a
serem ditas neste momento, cabendo ao sacerdote decidir. “Convertei-vos e crede
no Evangelho” é um lembrete da necessidade cristã de mudança de vida, de abrir
mão dos prazeres em prol de uma experiência mais próxima de Deus; “Das cinzas
vieste, às cinzas retornarás” recorda a brevidade da vida.
“As duas possibilidades são
válidas porque esses são os dois sentidos principais das cinzas”, afirma à BBC
News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, vice-diretor do Lay Centre, em
Roma, e professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, também em Roma.
“Esse dia nasceu como uma
manifestação de devoção popular entre os séculos 3º e 4º. Os cristãos, nesse
dia, para se prepararem para a quaresma, impunham sobre si as cinzas em sinal
de penitência pública”, explica à reportagem a vaticanista e historiadora
Mirticeli Medeiros, pesquisadora de História do Cristianismo na Pontifícia
Universidade Gregoriana.
Para o historiador, teólogo e
filósofo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana
Mackenzie, de São Paulo, a celebração surgiu “nas comunidades cristãs primitivas”
como referência ao início do período de preparação para a Páscoa.
“Nasce junto com esse costume de se guardar os 40 dias do que chamamos de quaresma”, diz ele, à BBC News Brasil. “É um período que marca momentos de reflexão, de arrependimento, de renovação espiritual.”
Papa Gregório, em imagem pintada por Francisco de Zurbarán© Domínio Público
O rito foi oficializado na
liturgia pelo para Gregório Magno (540-604), na virada do século 7º. “Foi
chamada por ele de ‘capite ieiunii’, ou seja, o dia em que se começava o
jejum”, pontua Medeiros.
A pesquisadora conta que,
conforme relatos antigos, no início a cerimônia era realizada em Roma sempre
“em silêncio” e pessoalmente pelo papa, “que organizava uma procissão nos
arredores da Basílica de Santa Anastácia e Santa Sabina”.
Referências bíblicas
“As cinzas carregam duas
simbologias. A primeira é a ideia da efemeridade da vida, do fato de que quando
Deus disse [no Antigo Testamento] de que das cinzas viemos e às cinzas
voltaremos, era para lembrar que o ser humano é pequeno diante da grandeza de Deus”,
contextualiza Domingues.
“A segunda questão é a do
arrependimento, da penitência. Aí é uma leitura cristã, já do Novo Testamento,
porque Cristo, segundo os evangelhos canônicos questionou algumas tradições do
mundo judaico […], o legalismo de alguns doutores da lei. [Nesse contexto], no
período da quaresma ele começa com essa reflexão interna da importância do
arrependimento, da penitência, de reformular o que nós somos e como estamos
vivendo”, afirma Domingues.
Assessor da Comissão dos
Movimentos Eclesiais da Diocese de Itabira, em Minas Gerais, o padre Eugênio
Ferreira de Lima lembra à BBC News Brasil que inúmeras referências bíblicas
baseiam esse costume litúrgico. “Nelas, o uso das cinzas aparece tanto para a
purificação e a penitência quanto para lembrar a relatividade da vida”,
interpreta ele.
No livro do Gênesis, o primeiro
do Antigo Testamento, há a reprodução de um diálogo que Deus teria tido com
Adão explicando a ele como seria a vida fora do Éden. “No suor do teu rosto
comerás o pão, até voltares ao solo, pois dele foste tirado. Sim, és pó e ao pó
voltarás”, diz o versículo.
Mais adiante, no mesmo livro, há uma passagem em que Abraão afirma “vou ousar falar ao meu Senhor, eu que não passo de pó e cinza”.
'Quarta-Feira de Cinzas', óleo sobre tela feita pelo pintor Karl Spitzweg, no século 19© Domínio Público
Já no livro de Jó, um versículo
orienta “repetis à exaustão máximas de cinza, torres de argila são vossas
defesas”. No segundo livro de Samuel, diz-se que “Tamar tomou cinza e derramou
sobre a cabeça, rasgou sua túnica de princesa, pôs as mãos na cabeça e
afastou-se gritando”.
“Ele se agarra à cinza, seu
coração enganado o desvia: ele não se verá libertado”, lê-se em Isaías.
“E também como sinal de
arrependimento, em [no livro de] Jonas, o povo se veste de cinzas, cobre a
cabeça de cinzas em sinal de arrependimento e penitência”, comenta o padre
Lima. “Eles proclamaram um jejum e se vestiram de sacos, desde os grandes até
os pequenos […]. Ele se levantou do trono, tirou o manto real, cobriu-se de
saco e sentou-se sobre a cinza”, diz o trecho bíblico.
No livro dos Números, está
escrito que “para este homem impuro, tomar-se à cinza do brasileiro do
sacrifício pelo pecado”.
O sacerdote explica que, no
Novo Testamento, há relatos que associam passagens de Jesus à simbologia das
cinzas. Quando ele lamenta sobre as cidades da Galileia que não se renderam à
sua palavra, diz que “cobertas de saco e cinza, elas se teriam convertido”,
segundo narração do Evangelho de Mateus.
Na carta aos Hebreus, diz-se
que “a cinza de novilha esparzida sobre os seres maculados os santificam,
purificando-lhe os corpos”.
“Ou seja, as cinzas são o
convite que a Igreja faz para refletirmos sobre a brevidade e a relatividade de
nossa vida aqui na Terra, dizendo o que realmente somos: humanos que vamos
morrer”, pontua o padre. “Somos chamamos a entrar nesse tempo da quaresma dedicando
mais tempo para a palavra da Deus e para abrir o coração e perceber a presença
do Cristo no meio de nós: o Cristo que passa fome, que é torturado, que é
injustiçado, que tem necessidade de roupa, de casa, de comida.”
“É uma simbologia muito bonita”,
comenta o teólogo Moraes. “Marca o início de um período que conclama ao
autoexame, à autorreflexão, à busca por uma renovação espiritual.”
Do que são feitas
Segundo a tradição católica, as
cinzas utilizadas nessa missa de Quarta-Feira que marca o início da quaresma
são obtidas a partir da queima de um produto de outra missa, realizada no ano
anterior. “Pela práxis oficial, as cinzas provém das folhas do domingo de
Ramos, celebrado no ano precedente. Acrescentam a elas agua benta e incenso”,
diz a historiadora Medeiros.
Domingues vê também simbologia
nessa origem do material. “Eles queimam os ramos usados na liturgia do ano
passado e essas cinzas são guardadas para o ano seguinte. Isso mostra o ciclo
da liturgia e da vida cristã, que nunca acaba, fecha um ciclo e começa outro”,
acrescenta ele.
Padre Lima conta que funciona
assim: “uma quantidade razoável daqueles ramos bentos no Domingo de Ramos é
guardada, conservada e queimada para se transformar nas cinzas que, depois, são
abençoadas na missa e, no momento certo do ritual da Quarta de Cinzas, todos os
fiéis são convidados a se apresentarem para serem assinalados com elas”.
Ele enfatiza que o momento não é de ânimo negativo. “Não é tristeza. É penitência, é conversão, é mudança de vida. É preciso lembrar isso”, comenta.
Fronte com a cruz feita de cinzas em missa de Quarta-Feira de Cinzas© Jennifer Balaska/ Wikimedia Commons/Domínio Público
Outras igrejas cristãs
De acordo com o teólogo e
professor Moraes, a tradição da Quarta-Feira de Cinzas não foi incorporada
pelas igrejas protestantes e evangélicas.
“As igrejas do protestantismo
histórico, algumas são mais litúrgicas, outras menos. Todas reconhecem o
período da Páscoa e, portanto, o período que a antecede, esses 40 dias da
quaresma. Mas varia de intensidade [conforme a denominação religiosa]. Numa
igreja litúrgica, às vezes o pastor cita que iniciamos o período da quaresma,
algumas igrejas usam cores específicas”, conta.
“Já as evangélicas pentecostais
e neopentecostais geralmente são muito pouco litúrgicas, é um espontaneísmo
muito grande então dificilmente você vai encontrar uma valorização desse
período de tempo em relação à observância da quaresma”, acrescenta ele.
Moraes afirma que, em geral, os
cristãos não católicos não têm nenhum ritual próprio para a Quarta-Feira de
Cinzas.
Fonte:História de Edison Veiga - De Bled (na Eslovênia) para a BBC News Brasil
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