“Toquem o Hino Nacional!” Essas foram as primeiras palavras que o padre brasileiro Roberto Landell de Moura (1861-1928) disse na inédita demonstração pública de transmissão de rádio, em 16 de julho de 1899. A revelação é do escritor Hamilton Almeida biógrafo do inventor do rádio, graças a uma obstinada pesquisa em jornais da época. O escritor dedica-se a desvendar há 45 anos a vida daquele brasileiro injustiçado pela história e que ainda pouca gente conhece.
Cem anos do rádio no Brasil:
Padre Landell de Moura conviveu com um pé na fé e outro na ciência - Acervo do
biógrafo Hamilton Almeida |
Aventura
em São Paulo
Naquele final de século 19, o público ficou boquiaberto com as palavras
e com o hino. Não havia dúvida de que aquele 16 de julho de 1899 simbolizava a
genialidade humana. Houve até quem chamasse de bruxaria. Mas era um padre que
fazia a transmissão de áudio entre o Colégio Santana, de onde ele era pároco,
na zona norte de São Paulo, até a Ponte das Bandeiras, a cerca de quatro
quilômetros de distância. Aquela data, de primeira demonstração pública de
transmissão radiofônica, que vai completar 123 anos.
Hamilton Almeida buscou rastros e desvendou lacunas da vida do inventor
pelo Brasil e em outros países. Quando fazia faculdade de jornalismo, ouviu de
um professor chileno (Julio Zapata) que um padre brasileiro era o verdadeiro
inventor do rádio e não o físico italiano Guglielmo Marconi, que criou o
telégrafo.
“Vi que a história do brasileiro estava incompleta e que ele era vítima
de uma injustiça. Eu fui juntando as peças. Busquei centenas de pessoas que
trabalharam e conviveram com ele, além dos documentos espalhados por muitos
lugares”, afirma o biógrafo.
Duas experiências públicas de Landell de Moura em São Paulo foram documentadas. A segunda experiência, no ano seguinte da primeira, foi publicada em apenas um veículo, o Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro.
Cem anos do rádio no Brasil : Padre Landell de Moura produziu um equipamento que deixou o público boquiaberto - Foto: Hamilton Almeida |
O
primeiro livro publicado por Hamilton saiu nos anos 1980 em Porto Alegre, terra
do Padre Landell. Em 2004, o autor publicou obra na Alemanha. Na obra mais
recente, o autor resolveu desvendar detalhes sobre o dia da transmissão de
rádio e também sobre a busca do padre por patentear as descobertas. “Quando ele
colocou a voz em em uma onda de rádio, ele abriu a porta para as comunicações
sem fio. E isso é legado para os nossos dias, como o telefone celular. Ele fez
descobertas que acabaram gerando uma série de outras descobertas desde então.
Landell, segundo explica o biógrafo, patenteou o
rádio no Brasil e nos Estados Unidos. “Eu consegui aprofundar uma série de
aspectos nessa nova pesquisa. Tem uma informação também que eu considero muito
importante é que a invenção dele nos Estados Unidos foi reconhecida por outros
inventores. Consegui encontrar provas disso (e estão no livro)”.
Cem anos do rádio no Brasil : Padre Landell de Moura conseguiu patentear invento nos Estados Unidos em 1901. Acervo do biógrafo Hamilton Almeida |
O escritor explica que Landell queria continuar pesquisando. Por isso, ele buscou correr para patentear a descoberta. Ele não tinha recursos da igreja ou público para isso. “Ele solicitou recurso, mas ninguém deu apoio nenhum. Nunca ganhou nenhum dinheiro. Apenas perdeu, na verdade. Ele saiu dos Estados Unidos endividado porque foi para lá com a intenção de ficar um ano (em 1901). Mas acabou ficando três anos e meio”. Para o invento, ele conseguiu dinheiro emprestado com um comerciante de Nova Iorque e ficou devendo uma pequena fortuna que só conseguiu pagar anos depois. A dívida era de US$ 4 mil. “Seria o equivalente a hoje uns R$ 600 mil”.
Cem anos do rádio no Brasil : biógrafo descobriu registros da invenção do rádio pelo padre Landell de Moura - Acervo do biógrafo Hamilton Almeida |
Diferentemente de outros inventores
contemporâneos de Landell, como Alberto Santos Dumont, que tinha seus próprios
recursos, o padre vivia com o pires na mão. “Ninguém deu atenção realmente para
o que ele fazia. Além disso, padre cientista não era bem visto dentro da igreja
nem fora dela”.
Era um
momento histórico também de início da república no Brasil e também com a
conquista do estado laico. Ciência para um lado, fé para o outro. Mas não era
nisso que Landell acreditava. Ele achava que os dois campos poderiam conviver e
interagir. “O padre estava um pé em cada lado. Mas tem declarações dele que ele
achava que religião e ciência eram compatíveis”.
Curioso desde antes de padre
Landell,
quando tinha 16 anos de idade, antes de ser padre, criou uma espécie de
telefone. O menino era curioso e gostava de ler sobre tudo, de telecomunicações
à astronomia. “Ele examinava animais mortos e tinha um interesse
variado, em biologia, física, astronomia…Ao mesmo tempo, ele tinha uma vocação
religiosa também por influência da família”.
Tanto que
quando Landell foi para Roma ajudar no seminário, ele também buscou estudar
física e química na Universidade Gregoriana. Foram duas formações ao mesmo
tempo. “Brigavam com ele também por causa dessa situação de ser padre e
cientista. Quando ele inventou o rádio, pediu licença para voltar ao Brasil e
ir aos Estados Unidos”.
Empreendedor
Seis jornais deram destaque ao invento com a experiência de 1899. Três veículos em São Paulo e outros três no Rio de Janeiro. “Era uma novidade, mas não foi o suficiente para traduzir em patrocínio que é o que ele precisava. Ele investiu nisso, mas infelizmente não teve resultado para continuar pesquisando. Acabou ficando marginalizado assim na história”, afirma.
Cem anos do rádio no Brasil: história do padre Landell de Moura foi registrada no começo do século 20 pelo New York Herald (jornal veiculado entre 1825 e 1924) - Acervo do biógrafo Hamilton Almeida. |
“Quando ele veio da Itália para o Brasil, ele
tinha uma ideia de que era possível fazer comunicação pelo ar. Naquele momento
só existia o telégrafo”. Almeida explica que o inventor demorou mais de 10 anos
para desenvolver o equipamento. Landell voltou ao Brasil em 1886. Os registros
mostram que em 1893, apesar dos pedidos para a igreja, ele não conseguiu
recursos. Em 1895, o italiano Marconi apresentou o telégrafo. “Mas a diferença
fundamental é que Landell conseguiu transmitir a voz”.
Em
1899, ele convidou empresários em São Paulo para apresentar a novidade, da
capela de Santa Cruz, mais precisamente do Colégio Santana, ele conseguiu
transmitir os sons até a Ponte das Bandeiras, sobre o Rio Tietê. “Depois ele
fez a mesma experiência em direção à Avenida Paulista. Ele teve a presença do
cônsul britânico que assistiu à demonstração”.
Gênio
esquecido
O
biógrafo lamenta que até hoje Landelll de Moura não tem a fama que poderia ter,
inclusive internacionalmente. Também por isso, o biógrafo entende, que diante
dessa injustiça, passou a se dedicar a perseguir os rastros da fantástica
história do padre. Para o novo livro, foi aos Estados Unidos e pesquisou também
na Itália atrás das pistas. “Cheguei a contratar uma pesquisadora na biblioteca
de Nova Iorque para me ajudar. Assim foi se juntando esse quebra-cabeça. Às vezes,
nos livros da igreja ele não escrevia nada”.
Por
isso, conversar com testemunhas fez as peças se juntarem. Como todas já
faleceram, os livros tentarão fazer justiça ao inventor. “Para os fiéis da
igreja não era algo simpático porque ele fugia do tradicional de ficar lá só
dentro da igreja. Mas ele tinha essa capacidade intelectual de criar”. Mas voz
pelo ar parecia coisa do demônio, apontavam aqueles que davam de ombros para a
ciência.
Nos
Estados Unidos, ele buscou patentear o rádio, o rádio por ondas de luz e um
telégrafo. “Mas ele não ficou lá para comercializar. Ele quis voltar, mas ficou
endividado. Infelizmente, no caso dele, o obscurantismo venceu. Caso tivesse
vingado a história do padre brasileiro, o Brasil poderia estar na vanguarda da
industrialização do aparelho”.
Depois
do rádio, ele começou a estudar outros temas fora das telecomunicações e da
religião, incluindo psicologia e outras ciências. Mas ele continuava sendo
admoestado pelo bispo. Padre Landell morreu em 1928, vítima da tuberculose, aos
67 anos. “Ele fumava. Não se agasalhava naquele frio de Porto Alegre. Ele dizia
que dava a roupa para os pobres. Ele estava muito triste mesmo”. A vacina da
tuberculose havia sido descoberta naquela década, mas não a tempo de salvar o
homem que se dedicou a Deus e à ciência ao mesmo tempo
Série de reportagens
Em
comemoração aos cem anos do rádio no Brasil, completados em 7 de setembro de
2022, a Agência Brasil publica uma série de 10
reportagens sobre as principais curiosidades históricas do rádio
brasileiro.
O
centenário do rádio no país também será celebrado com ações multiplataforma em
outros veículos da EBC, como a Radioagência e a Rádio
MEC que transmitirá, diariamente, interprogramas
com entrevistas e pesquisas de acervo para abordar diversos aspectos
históricos relacionados ao veículo. A ideia é resgatar personalidades,
programas e emissoras marcantes presentes na memória afetiva dos
ouvintes.
Edição:
Alessandra Esteves/Ag Brasil
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