Reconhecida internacionalmente com uma das melhores leis de enfrentamento à violência doméstica e familiar, a chamada Lei Maria da Penha (Lei lei nº 11.340) ainda precisa que seja cumprida efetivamente. Com o objetivo de instaurar mecanismos para tentar erradicar a violência contra a mulher e coibir atos violentos cometidos dentro das residências, ela foi promulgada em 7 de agosto de 2006, após intensa mobilização da sociedade.
Entre as vítimas de feminicídio no último ano, 61,8% eram negras (FOTO/ Giorgia Prates)
A lei leva o nome da
farmacêutica Maria da Penha, hoje com 76 anos, e se originou da luta para que
seu agressor, o ex-marido, Marco Antonio Heredia Viveros, fosse condenado. Em
1983, ele tentou matá-la duas vezes – ela ficou paraplégica por conta das agressões.
Viveros foi julgado em 1991 e 1996, mas escapou da condenação. Somente em 2002,
quando faltavam seis meses para a prescrição do crime, acabou condenado. Ele
cumpriu um terço da pena e foi solto em 2004.
No Brasil, mais de 80% dos
crimes de violência doméstica contra as mulheres tem parceiros e ex-parceiros
como autores. O roteiro dos crimes seguem relativamente os mesmos estágios. Sob
alegação de ser por ciúme, culpa da bebida, a não aceitação da separação, vêm
primeiro uma palavra mais áspera, depois os gritos, o primeiro tapa, socos,
chutes e, por fim, a tentativa de feminicídio.
“Vivemos um estado de
calamidade em relação à violência contra as mulheres, e a pandemia nos
colocou em uma situação mais séria ainda. A dificuldade das mulheres saírem
para fazer as denúncias, a precarização do serviço público que vem acontecendo,
as ações, inclusive de privatizações de serviços públicos que acabam diminuindo
a qualidade dos serviços de apoio e amparo às mulheres, pioram o quadro”,
destaca a coordenadora do Força-Tarefa Interinstitucional de Combate aos
Feminicídios, Ariane Leitão.
Números de guerra
No Brasil, uma em cada quatro
mulheres acima de 16 anos foi vítima de algum tipo de violência na pandemia.
Esse e outros dados foram minuciosamente levantados por uma pesquisa Datafolha
encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e divulgada em
junho deste ano. Conforme aponta o levantamento, os impactos da violência
repercutem no sustento dessas mulheres. Por exemplo, 46,7% das mulheres que sofreram
violência desde o início do surto também perderam o emprego. A média das
mulheres que perderam o emprego entre as que não sofreram violência foi de
29,5%.
“Houve um incremento nos
números de feminicídios e violência doméstica desde o início da pandemia,
provavelmente por conta da crise econômica e da necessidade de confinamento.
Atrás desses números encontra-se a cultura do machismo, as dificuldades no
fluxo de atendimento das vítimas, o descrédito no sistema de justiça e o receio
de denunciar”, destaca a defensora pública e dirigente do Núcleo de Defesa
da Mulher da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul (NUDEM – DPE/RS), Tatiana
Boeira.
Segundo o Anuário Brasileiro de
Segurança Pública de 2021, do FBSP, em 2020 o país teve 3.913 homicídios de
mulheres, dos quais 1.350 foram registrados como feminicídios, média de 34,5%
do total de assassinatos. “Em números absolutos, 1.350 mulheres foram
assassinadas por sua condição de gênero, ou seja, morreram por ser mulheres”,
aponta o levantamento. A maioria desses crimes foram cometidos contra mulheres
negras.
Machismo e medo
Estudiosa de vários casos de
violência contra a mulher no Brasil, sobretudo no século 19 e início do século
20, a historiadora Maíra Rosin, pesquisadora na Universidade de São Paulo
(USP), argumenta que o maior gargalo para a aplicação plena da Lei Maria da
Penha está nos mecanismos de cumprimento da norma. “Muitas mulheres não
denunciam porque têm medo, sofrem reprimendas de familiares. E muitas
delegacias não estão preparadas para receber esse tipo de denúncia, às vezes
considerado quase um ‘mimimi’, algo que não deve ser levado a sério”,
afirma.
O que poderia avançar, na
avaliação da pesquisadora, são os mecanismos para que as mulheres tenham
segurança na denúncia, além de maior efetividade nas medidas protetivas e
acolhimento psicológico nas delegacias. “O machismo acaba aparecendo no delegado, no
promotor, no juiz, em todo aquele que aceita a legítima defesa da honra como
argumento jurídico”, diz Rosin. “Historicamente, o que observamos é a
recorrência da mulher que acaba culpada pela própria violência que sofreu.”
Para a advogada Renata Jardim,
coordenadora de programas da ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos,
não foi possível articular um sistema nacional para que se formasse uma ideia
clara e objetiva em relação aos números da violência de gênero e do
feminicídio. “O que temos mais organizado são os dados do sistema de justiça e do
sistema de segurança pública de delegacias, que são aquelas mulheres que
conseguiram fazer a denúncia, que ingressaram com o processo e depois os dados
da saúde, mas eles não dialogam entre si”, expõe. Ela frisa que os números
a que se tem alcance retratam um quadro muito alarmante, de grande percentual
de subnotificações. “Precisamos olhar para os números oficiais como uma
ponta desse iceberg, eles têm uma gravidade ainda maior”, frisa.
“Importância histórica, social e política”
A Lei Maria da Penha já foi
considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) a terceira melhor de
proteção à mulher do mundo, atrás apenas da espanhola, de 2004, e da chilena,
de 2005. Essas duas preveem educação e conscientização nas escolas.
A deputada federal Jandira
Feghali (PCdoB-RJ), relatora da Lei na Câmara dos Deputados, afirma que, apesar
do machismo ainda reinante, há muito o que comemorar. “Não há dúvida que esta
legislação foi um divisor de águas no combate à violência doméstica contra a
mulher. A lei é muito ampla, mas – como tudo – necessita de investimentos para
que seja cumprida em sua íntegra”, afirma a parlamentar.
“É uma legislação muito boa
porque é resultado de um consórcio de ONGs, de pesquisadoras que, com muito
estudo, muito debate, muita pesquisa, chegaram à redação legal específica
depois de um longo processo estratégico e bastante amplo, pensando nas
possibilidades”, diz a jurista Marina Ganzarolli, advogada especialista em
direito da mulher e cofundadora do movimento MeToo Brasil.
Entre os avanços que a lei
trouxe para a defesa das mulheres, destaca-se a tipificação e definição de
violência doméstica e familiar contra a mulher estabelecendo as formas de
violência doméstica como a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e
moral. Além disso, define que a violência doméstica contra a mulher independe
de orientação sexual e a veda a aplicação de penas pecuniárias nas condenações.
Antes da lei, por exemplo, o agressor podia responder ao crime pagando uma
cesta básica, entre outros.
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Com informações da RBA. Leia o texto completo aqui.
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