Em estudo brasileiro demonstrou, pela primeira vez, o aumento de uma enzima ligada a uma nova geração de bactérias multirresistentes em hospitais do país, acendendo o alerta das comissões de controle de infecção hospitalar.
Uma hipótese é que o cenário de hospitais superlotados, profissionais despreparados e o uso indiscriminado de antibióticos tenham contribuído para o aumento.
Projeto financiado pelo CDC americano mostra que a taxa de detecção da NDM quase sextuplicou em sete anos | Hospital Universitário Antônio Pedro (Huap)
Chamada de metalobetalactamase New Delhi
(NDM-1), a enzima foi isolada pela primeira vez em 2009 na Índia e desde então
já provocou surtos naquele país, no Paquistão e na Inglaterra. Japão,
Austrália, Canadá e Estados Unidos também registraram aumento de casos.
No Brasil, a NDM já
tinha sido detectada, mas nunca quantificada. De acordo com a publicação, a
taxa de detecção dessa enzima em um grupo de bactérias (enterobactérias) quase
sextuplicou em sete anos, de 4,2% para 23,8%, entre 2015 e 2022, com pico na pandemia de Covid-19.
A NDM faz parte de um grupo maior de enzimas
produzidas por bactérias, as carbapenemases, que representam hoje uma ameaça
global à saúde pública devido aos altos níveis de resistência aos antibióticos
atuais. Outra velha conhecida é a KPC, Klebsiella pneumoniae, responsável por
vários surtos em hospitais brasileiros e do mundo.
Intoxicação por água é possível? Entenda o risco
Uma hipótese é que o
cenário de hospitais superlotados, profissionais despreparados e o uso indiscriminado de antibióticos tenham
contribuído para o aumento. O estudo demonstra que, entre 2020 e 2022, houve
alta de 65,2% da detecção de enterobactérias e de 61,3% da Pseudomonas
aeruginosa no total de amostras isoladas.
Outras pesquisas já haviam detectado que até 94%
dos pacientes infectados com Covid-19 receberam antimicrobianos em hospitais
durante a pandemia. Porém, muitas dessas indicações podem ter sido
desnecessárias porque se tratava de quadros virais e não bacterianos.
Mas o problema das bactérias resistentes até a
antibióticos mais modernos, como os carbapenêmicos, é anterior à pandemia e
ainda é objeto de muitos estudos. Na Europa, por exemplo, mesmo com a redução
do uso de antibióticos, a resistência bacteriana também aumentou entre 2019 e
2020.
Uma estratégia tem sido voltar a usar
antibióticos mais antigos, como a polimixina, que, embora mais tóxicos,
mostraram-se eficazes no combate a algumas dessas bactérias resistentes. Ocorre
que até eles estão perdendo o páreo.
Publicado na revista Clinical Infectious Diseases,
o estudo brasileiro foi financiado pelo CDC (Centro de Controle e Prevenção de
Doenças), dos Estados Unidos, e faz parte de um projeto internacional para
aprimoramento da detecção e do conhecimento sobre resistência bacteriana.
No Brasil, foram testadas mais de 80 mil
bactérias do banco de dados do sistema público de informações laboratoriais. A
enzima KPC continua a mais frequente, com taxa de detecção de 68,6% entre as
enterobactérias, enquanto a NDM teve 14,4%.
O que chama atenção, no entanto, é a taxa de
crescimento da NDM. Ela teve um aumento percentual anual de 41,1% entre as
enterobactérias e de 71,6% entre as P. aeruginosa. Já a KPC apresentou uma
queda de 4% no primeiro grupo de bactérias e uma alta de 22%, no segundo.
"A gente sabia que estava detectando mais
NDM, mas não tinha quantificado isso", diz Carlos Kiffer, autor principal
do estudo e professor adjunto de infectologia da Unifesp (Universidade Federal
de São Paulo).
Ele conta que, até então, a principal preocupação
girava em torno da KPC. "A gente sempre achou que a NDM era menos
importante. Embora ela tenha sido encontrada em menor proporção no total de
isolados, a taxa de crescimento dela é assustadora ao longo desses últimos
anos."
Kiffer diz que, se a NDM mantiver essa taxa de
crescimento elevado, ela pode tomar conta dos ambientes hospitalares nos
próximos três, quatro anos. Diferentemente da KPC, que pode ser combatida com
novos antibióticos mais eficazes, a NDM ainda não dispõe dessa alternativa.
"Aqui no Brasil não tem nenhum
[antibiótico] comprovadamente eficaz para a NDM. O que gente faz é usar
antibióticos antigos, alguns podem ou não ter efeito para essa resistência, mas
a gente não pode garantir que funcione."
Segundo ele, entre as estratégias de prevenção
para conter a disseminação da resistência bacteriana estão a higiene adequada
das mãos, o uso mais controlado de antibióticos nos hospitais, na comunidade e
nos ambientes veterinários, além do diagnóstico precoce.
"O diagnóstico laboratorial é problemático
em muitos lugares fora dos grandes centros do Sul e do Sudeste, o que aumenta
muito as chances de mortalidade", diz.
Uma melhoria da infraestrutura hospitalar é
outra recomendação. "Muitos hospitais brasileiros estão em um procedimento
de sucateamento e com redução de pessoal disponível para controlar a infecção
hospitalar."
Kiffer explica que o nível de conhecimento dos
gestores públicos de saúde sobre resistência bacteriana é muito desigual no
país. "Tem pessoas que conhecem bem o assunto, mas outras não estão
convencidas de que se trata de um tema prioritário."
Ele lembra que a falta de controle das infecções
hospitalares gera mortes evitáveis e um impacto no índice de internação
hospitalar, com aumento do tempo de permanência e dos custos.
"É uma epidemia silenciosa deste século. Se
a gente não fizer algo agora, vai sofrer num futuro muito próximo com a
restrição de opções terapêuticas, a um custo muito elevado, e, em muitos casos,
lidar com infecções intratáveis, o que já é uma realidade em muitos
hospitais."
O projeto também tem outras frentes de ação nas
áreas de educação, de treinamento e capacitação dos centros para a melhoria da
testagem nos laboratórios públicos de microbiologia.
Autor:CLÁUDIA COLLUCCI/ FOLHAPRESS
0 Comentários