A última cena do filme "Contágio" (2011) ilustra o caminho percorrido pelo fictício vírus que causou uma pandemia na obra cinematográfica. Um morcego carrega um pedaço de banana, e a fruta cai em uma espécie de abatedouro. Então, um porco a coloca na boca.
Mesmo sendo a hipótese mais realista, dúvidas foram postas, em especial por conta do laboratório de virologia de Wuhan. Uma das teorias era que o Sars-CoV-2 estivesse sendo estudado neste centro e, de lá, tivesse vazado.
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Depois, já morto em um restaurante, o porco é
preparado por um cozinheiro que, em certo momento, enfia seu dedo na boca do
animal. Ele não limpa bem suas mãos antes de cumprimentar uma cliente
interpretada pela atriz Gwyneth Paltrow. É ali que começa a infecção entre
humanos.
O trecho demonstra a complexidade que é determinar como ocorre a
passagem de um vírus para uma nova espécie de ser vivo, como é o caso do
Sars-CoV-2 com os humanos. De forma geral, o curso ocorre como é mostrado no
filme: o início da transmissão de um patógeno em que um microrganismo já
existente na natureza salta entre animais até chegar aos humanos.
No caso do novo
coronavírus, uma suposição inicial era de que um pangolim fosse um elo intermediário
que permitiu ao vírus avançar de outros animais para humanos. Apesar da venda
do animal ser ilegal, ela é comum nos mercados chineses -incluindo em Wuhan,
cidade onde os primeiros casos de Covid-19 foram registrados, no fim de 2019.
Mesmo sendo a hipótese mais realista, dúvidas foram
postas, em especial por conta do laboratório de virologia de Wuhan. Uma das
teorias era que o Sars-CoV-2 estivesse sendo estudado neste centro e, de lá,
tivesse vazado.
Essa suposição era inicialmente relegada a uma teoria
da conspiração. No entanto, ela começou a ser considerada como uma
possibilidade real. Investigações jornalísticas em veículos de peso foram
feitas. Relatos de pneumonia entre trabalhadores do laboratório dias antes dos
primeiros relatos oficiais da Covid-19 engessaram as suspeitas.
Outra questão era sobre a transparência: os
chineses não compartilhavam muitas informações e, então, surgiu a pergunta se
as autoridades do país asiático tentavam esconder algo.
Outra desconfiança,
essa ainda mais conspiratória, era que os chineses estivessem trabalhando para
aumentar o grau de patogenicidade do Sars-CoV-2, tipo de ensaio chamado de
experimento para ganho de função. Em certos nichos, acreditava-se até que a
introdução do vírus em humanos foi de propósito.
Em outubro de 2021, a OMS (Organização Mundial da
Saúde) organizou um estudo na tentativa de dar um ponto final nessa discussão.
Mas não foi o que aconteceu. O relatório da expedição apontava que,
provavelmente, um morcego era o repositório ancestral do vírus. Então, o
patógeno infectou um mamífero comercializado no mercado de Wuhan.
O problema é que, em razão dos poucos dados, a
equipe não concluiu como o patógeno se espalhou entre humanos, deixando ainda
em aberto uma brecha para a teoria do vazamento do laboratório.
Mesmo que a aposta da OMS não tenha tido os
resultados esperados, outras pesquisas já entregam melhores informações sobre a
possível origem do vírus. Em larga medida, a teoria mais aceita é a de que a
pandemia teve início no mercado de frutos do mar de Wuhan.
Um estudo publicado
em julho na Science indica que o primeiro epicentro de transmissão do
Sars-CoV-2 foi no mercado. Se o vírus tivesse vazado do laboratório, espera-se
que as transmissões iniciais partissem de lá.
Fernando Spilki, virologista e coordenador da Rede
Corona-ômica BR-MCTI, um projeto de laboratórios que sequencia os genomas de
amostras do Sars-CoV-2 no Brasil, explica que a teoria do vazamento não é muito
plausível.
"Primeiro porque não vimos transmissão a
partir [dos casos de pesquisadores do laboratório de Wuhan que apresentaram
pneumonia]. Outra coisa é que ela trabalha com uma coincidência
acidental", diz.
A teoria do experimento de ganho de função que
supostamente teria sido realizado pelos chineses também é rebatida. Essa
suposição era baseada numa propriedade da proteína spike do Sars-CoV-2 que
aumentava a transmissibilidade e a virulência do patógeno.
A questão era que,
até então, essa propriedade não era documentada em outros tipos de coronavírus.
Por isso, levantou-se a hipótese de que a capacidade só poderia ter sido
conferida por meio de experimentos em laboratório.
No entanto, pesquisas mais recentes já observaram
essa característica em vírus encontrados em animais na região de Laos, no
Sudeste Asiático. "A base molecular para que exista um vírus parecido com
Sars-CoV-2 já começa a ser demonstrado na natureza pela presença de vírus
semelhantes em morcegos", explica Spilki.
Para ele, essas novas evidências são indicativos de
que o Sars-CoV-2 se formou na natureza e, para infectar os humanos, deve ter
passado por recombinações com vírus mais próximos da nossa espécie.
Mas algo que ainda suscita dúvidas é o caminho
exato de animal para animal de modo que, enfim, o Sars-CoV-2 tenha chegado aos
humanos. "Nós não conhecemos toda a teia", resume o virologista.
Outra questão em
aberto é sobre o paciente zero. O virologista diz que esse ponto continua sem
resposta definitiva, havendo até a chance de introduções simultâneas da
infecção em humanos.
Mesmo com essas dúvidas, a teoria de uma origem
natural do vírus já enseja o debate sobre como degradações ambientais trazem
maior risco para emergências de saúde pública. O filme "Contágio" é
um exemplo para isso. Na obra, é mostrado que um trator derruba uma árvore. Por
isso ter acontecido, o morcego, que é o provável reservatório do vírus na obra,
sai voando e inicia o ciclo de passagem entre espécies, até infectar humanos.
Para o vírus que causa a Covid-19, o pontapé pode
ter sido semelhante ao que vimos nas telas do cinema. "Esse tipo de
desordem [ambiental] parece ter sido o início do processo que traz vírus, como
o Sars-CoV-2, [para os humanos]", conclui Spilki.
Autor: Samuel Fernandes / Folhapress
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