Não é difícil olhar para uma peça de couro colorida, com diferentes arabescos de coração, e imediatamente lembrar de Espedito Seleiro. Há mais de 70 anos dedicado a este ofício, o Mestre desenhou seu nome na cena artística brasileira e internacional, e agora crava-o em uma marca registrada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi). Ela acompanhará todos os produtos que saírem de seu ateliê, em Nova Olinda (CE), valorizando e protegendo um bem familiar compartilhado.
“É uma coisa que fica assegurada, porque se você tem algum objeto que
não tem documento, você não pode dizer que é seu. Se sofre que nem eu, que
perdi noite de sono, trabalhando dia santo e feriado pra descobrir um meio de
viver melhorzinho, aí quando descobre vem um cabra que quer tomar, diz que é
mentira, vai imitando, comprando material mais barato, vendendo peça mais
barata, é uma coisa horrível do nosso Brasil”, desabafa Espedito.
O registro vinha sendo discutido em família desde 2015. À época, alguns
desenhos começaram a ser registrados em cartório e um advogado vinculado ao
Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) deu entrada
no processo referente à marca. Devido a um desencontro de informações, a
família só retomou a ação em 2018, já com outro representante contratado, que
conseguiu o registro em 1º de setembro de 2020.
“O que foi protegido foi a marca para todos os produtos e serviços que
ele desenvolve, o que garante uso exclusivo dela em artigos de couro, vestuário
e na comercialização dos produtos em geral”, explica o advogado Bruno
Figueiredo, atual responsável pelo caso.
Com isso, conforme explica o professor de Direitos
Culturais da Universidade de Fortaleza, Humberto Cunha, há uma valorização
das peças, e quem violar o uso de uma marca reconhecida como a do Mestre
Espedito Seleiro estará sujeito a pagar indenização e até
a responder criminalmente.
Não vou empatar que ninguém faça, não tô procurando fazer isso, só quero
provar que o modelo é meu e que tem que pagar alguma coisa para nós”, ressalta.
Espedito Seleiro
Mestre da Cultura
CRITÉRIOS E GARANTIAS
O registro da marca, porém, é apenas uma das ferramentas
jurídicas que reconhecem uma criação singular e diferenciada como a do
artesão. Ela não impede que arabescos coloridos sejam utilizados por outras
pessoas, por exemplo.
“O conceito artístico característico da obra do Mestre Espedito integra
a arte popular nordestina enquanto conceito abstrato, portanto não tem
exclusividade. O limite da exclusividade vai estar na presença de traços
individuais muito característicos e, sobretudo, na vinculação à marca dele”,
reforça o advogado Bruno Figueiredo.
“Não estamos assessorando eles nisso, mas estes documentos vão ter
efeito de demonstração de autoria de anterioridade daquele produto e daquela
pessoa que levou a registro”, observa.
OUTROS CASOS NO CEARÁ
Além do Mestre Espedito Seleiro, a Central de Artesanato do
Ceará (Ceart) identificou outros dois artesãos, num universo
de 35.210 cadastrados, que também solicitaram o registro de marca no Inpi.
São eles Francisco Muniz, que trabalha com a renda de bilro incrustada no
barro, em Cascavel, e Maria Soares, dedicada ao bordado rococó, em Icó.
Maria preside a Associação dos Produtores de Artesanato, Gestores
Culturais e Artistas de Icó (Aproarti) e foi exatamente essa a marca registrada
em 2013, em parceria com o projeto Brasil Original, do Sebrae.
Ter nossa marca registrada no Inpi, nos trouxe mais
segurança, nos tornou mais conhecidos e tivemos mais clientes e mais
divulgação”, relata.
Maria Soares
Presidente da Aproarti
Segundo ela, o grupo não teve despesas financeiras com o registro, todo
bancado na parceria com o Sebrae. Já no caso do Mestre Espedito, que precisou
recorrer a um escritório especializado em Fortaleza, a família contabiliza até
agora uma despesa de cinco salários mínimos anuais durante três anos
e outros R$482 semestrais pelos próximos dez anos. Passada esta década, o
registro da marca deve ser renovado.
“Agora tem que ganhar mais dinheiro para manter”, reforça o Mestre de
Nova Olinda. É exatamente a essa relação custo-benefício que o
professor Humberto Cunha atribui os poucos exemplos de marcas artesanais
registradas.
Somente artesãos com grande diferencial e reconhecimento, que transitam
entre o artesanato e a criação artística, como Espedito Seleiro, sentem-se
animados a tal providência”, afirma.
Humberto Cunha
Professor de Direito Cultural da Unifor
COMO FAZER
Interessados em fazer o mesmo, devem seguir o passo a
passo disponível no site do Inpi, que inclui a busca para não registrar
uma marca parecida com outra já existente; o pagamento de uma Guia de
Recolhimento; e só então o pedido, seguido do acompanhamento até o deferimento
do processo.
Mas além desse registro, os artesãos cearenses podem recorrer a outras
iniciativas de valorização de suas peças, como a obtenção do selo da
Ceart.
De acordo com a Central, o selo, criado em 2015, tem como
objetivo certificar a autenticidade dos produtos artesanais, melhorar
os processos produtivos, elevando o padrão de qualidade, criar uma referência
para o mercado consumidor, e reconhecer as obras de arte popular e sua relação
com a identidade cultural cearense.
“Essa avaliação confere o selo que se classifica em três níveis, além da
arte popular. Desde sua criação, já foram certificados 10.956 produtos”,
finaliza a nota.
PATRIMÔNIO CULTURAL
O professor Humberto Cunha aponta ainda outros caminhos que podem ser
viabilizados por meio de uma política pública efetiva.
A proteção das práticas artesanais pode ser feita pelo registro enquanto
patrimônio cultural, mas esse não garante exclusividades individuais, porém,
fortalece e valoriza a comunidade de origem, que se valoriza coletivamente”.
Humberto Cunha
Professor de Direito Cultural da Unifor
Ainda segundo Cunha, essa é uma situação que começa a se definir a
partir das convenções para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial (2003)
e sobre a proteção e promoção da Diversidade das Expressões
Culturais (2005).
“Essas convenções dizem que o aproveitamento de criações coletivas não
pode ser privatizado, mas os criadores da coletividade tem que participar dos
benefícios. Se, por exemplo, um estilista utiliza uma criação de uma
determinada comunidade, em princípio, por questões éticas, teria que pedir
autorização e, por questões econômicas, deveria propor uma partilha dos
benefícios”, afirma.
Mas, de acordo com o professor, isso é algo que está em fase de
construção. “Por enquanto, está em declarações e convenções internacionais que
precisam se materializar em legislações de cada país, porém o reconhecimento
formal facilita”, conclui.
Foto: divulgação/ Instagram / Fonte: Diário do Nordeste
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