Nem o feijão com arroz escapou da alta da inflação e do desemprego. A combinação de aceleração de preços e renda em queda mudou o cardápio dos brasileiros mais pobres, que se veem obrigados a optar por produtos mais baratos.
Inflação, desemprego, alta do gás e outros fatores afetam o bolso do consumidor e mudam hábitos tradicionais do cotidiano, como o famoso arroz com feijão no almoço.
Saem
óleo de soja, feijão e carne; entram banha de porco, lentilha e ovo. Até o
preparo da alimentação foi afetado. Com o botijão de gás a mais de R$ 100 em
algumas cidades, muitas famílias trocaram o fogão por lenha e carvão.
Enquanto
numa ponta os preços sobem, na outra a renda cai. Além da redução do valor do
auxílio emergencial, a taxa de desemprego atingiu o patamar recorde de 14,7% no
trimestre encerrado em abril.
Solange
Ferreira, dona de um mercadinho no bairro Jardim Éster Yolanda, zona oeste de
São Paulo, afirma que a situação dói na alma. "Alguns [consumidores] vêm
com dinheiro contado para comprar três tomates. Chega na hora de pagar e têm de
tirar um."
Reflexo
desse cenário, aumentou a oferta de arroz quebrado e bandinha (o meio feijão),
substitutos mais baratos para o produto padrão. Cestas básicas também têm
contado com uma mistura maior desses produtos com os tradicionais.
Bárbara da
Silva, 19, de Heliópolis, favela na zona sul da capital paulista, é uma das que
têm dependido de doações. Mãe de um menino de dois anos, ela está sem emprego,
e o marido, que trabalha como marceneiro, não tem encontrado muitos serviços.
Assim, a família riscou frutas, verduras e iogurtes da lista.
De acordo
com Ana Maria Segall, coordenadora de relações internacionais da Rede Penssan
(Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional),
frutas e verduras são os primeiros alimentos que as pessoas retiram do cardápio
em uma situação de insegurança alimentar –quando não há acesso pleno e seguro a
alimentos de qualidade conforme a dieta de uma população. Em seguida, são
retirados a carne e os derivados de leite.
A troca de
produtos por substitutos mais baratos, como de um arroz mais nobre pelo
quebrado, é reflexo dessa situação. O produto costuma ser exportado para a
África, mas, com o aumento de 5% da safra do cereal e os preços domésticos
subindo, parte maior da produção ficou no mercado interno.
Uma foto de
um saco do produto da marca Rampinelli viralizou na última semana acompanhada
por um questionamento da qualidade do alimento. No entanto, afora a aparência,
não há diferença em termos nutricionais para outros tipos de arroz. O produto
costuma ser usado em sopas, canjas e ração animal. No caso do feijão, a
indústria –afetada por um ano mais seco e de geada– apostou no bandinha, que
sai por valores inferiores a R$ 5 por quilo, enquanto o produto padrão se
aproxima de R$ 7.
Outro
produto cujo consumo despencou foi a carne bovina, paralelamente à redução do
auxílio emergencial.
"A
queda nas vendas beira 40% nos últimos meses, enquanto a de frango dobrou –e
olha que aqui o povo come carne de boi", diz Ildeu Afonso, que tem um açougue
na periferia de Cuiabá (MT).
Na cidade,
há registro de filas para doações de restos de ossos de boi durante a pandemia.
Em 2020, o consumo de suínos, aves e ovos cresceu 5,5%, 6,5% e 9,1%,
respectivamente –valores que se mantiveram estáveis no primeiro trimestre deste
ano, de acordo com a ABPA (Associação Brasileira de Proteína Animal). Enquanto
isso, o consumo de carne bovina caiu 7%.
A cesta dos
mais pobres também passou a ter mais apresuntado, empanado e pão
industrializado. Segundo a consultoria Kantar, o consumo desses itens na classe
D/E cresceu 14,8 e 11 pontos percentuais, respectivamente, entre março de 2020
e de 2021.
O cenário
contrasta com o vivido por essas classes nas duas últimas décadas. De 2004 a
2013, famílias viram a renda média crescer junto a uma maior distribuição de
renda, o que permitiu uma melhora do padrão de consumo.
Desde 2015,
porém, há uma reversão desse quadro, agravada pela pandemia. "A partir do
segundo trimestre de 2020, esse processo se radicalizou. Todos perdem, mas quem
está na base perde proporcionalmente mais", diz André Salata, professor do
programa de pós-graduação em ciências sociais da PUCRS.
Para ele, é
preciso manter o auxílio emergencial a curto prazo e recuperar o mercado de
trabalho a longo. Embora a alta de preços ocorra para todas as faixas de renda,
ela é mais sentida pelos mais pobres, cuja cesta de consumo é composta
principalmente por alimentação, transporte e energia –os vilões da inflação nos
últimos meses.
Dados do
Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostram que os mais pobres
sentem mais a escalada de preços na pandemia. Segundo o instituto, a faixa da
população com renda considerada muito baixa (inferior a R$ 1.650,50 por mês)
registrou inflação de 9,24% no acumulado de 12 meses até junho. É a maior
variação entre os seis grupos pesquisados.
Além dos
alimentos, pressionam o orçamento dos mais pobres o gás de botijão, que acumula
alta de 24,25% em 12 meses até junho, e a conta de luz, que subiu em meio à
crise hídrica. Segundo o IBGE, as tarifas de energia residencial acumularam
alta de 14,2% em 12 meses até junho.
Sem dinheiro
para pagar a conta de luz, Elias, 64, pedia ajuda de pedestres em uma calçada
na Lapa, zona oeste de São Paulo, na sexta (23). Em mãos, o boleto de R$ 124.
Morador de
Franco da Rocha, ele divide o terreno com a ex-mulher e quatro filhos. Além da
energia, ele destaca o preço do gás. "Ontem eu fui queimar lenha [para
cozinhar] e meu vizinho reclamou da fumaça. Está tudo muito difícil",
afirma.
Desempregados
dependem de doações para se alimentar São Paulo | Agência Mural"Na casa em
que mora com os quatro filhos e o marido na Favela do Pullman, na zona sul de
São Paulo, a autônoma Fernanda Cristina Beccare, 38, deixou de comer coisas
simples que gostava como cuscuz e sardinhas enlatadas.
A dieta dela
está restrita ao básico, como arroz e feijão. Mesmo assim, só consegue comida
por causa de doações de organizações sociais.
Apesar de
contar com ajuda, ainda faltam itens essenciais, como produtos de higiene
pessoal e roupas, ainda mais com o clima mais frio do inverno. "Se já
estava difícil para arrumar serviço antes da pandemia, agora piorou",
afirma. "Como se não bastasse, as coisas estão absurdamente caras. E como
comprar sem trabalhar?"
Na família,
a única renda vem do trabalho como jardineiro do marido de Fernanda. Com filhos
entre 7 e 18 anos, ela diz que "graças a Deus não tem problemas com
energia", mas isso só é possível com a ajuda que recebe. "Sem isso,
não sei o que seria da gente."
Além da
perda de renda causada pelo aumento do desemprego na pandemia do coronavírus, a
inflação pressiona o poder de compra, principalmente dos mais pobres.
"O
miojo e o ovo estão salvando os moradores", comenta Cleberson da Silva
Pereira, economista do CEP (Centro de Estudos Periféricos).
Pés de
frango, língua, músculos, peixes mais baratos e cortes suínos também entraram
na dieta da periferia.
"Compramos
o mais barato. No açougue são sempre as carnes mais baratas, quando não é
ovo", comenta a auxiliar de escritório Tomásia Aparecida, 57, do Grajaú,
zona sul de São Paulo. "Ultimamente tenho comprado itens de feijoada. E só
o que resta e sai mais barato, como fígado, peixe e pé de frango." Na
mesma região, Leia Santos, 45, se define como mãe e pai dos quatro filhos. Com
renda de R$ 398 do Bolsa Família, gasta R$ 350 de aluguel. Os R$ 48 que restam
é o que ela tem para comida. "Hoje o que mais temos em casa é arroz,
feijão e ovos. Mistura não tem porque só dá a cartela de ovo mesmo",
afirma.
Nos grupos
de mensagens do bairro, desabafos de situações como a falta de luz em casa ou
não conseguir dar comida aos filhos são comuns. "Já não aguento mais tanto
sofrimento, minha bebê sem leite desde ontem. Consegui colocar ela agora pra
cochilar depois de muita luta porque ela só chora com falta da mamadeira. Só
tem nove meses", escreveu uma mãe em uma das publicações.
Outras
pessoas pedem indicações de onde há doações.
Responsável
por um projeto com sede no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, Jedderson
Johny dos Santos, 29, confirma que a pandemia escancarou uma realidade já
existente na periferia. "Alimentos faltaram para famílias que havia tempos
não sabiam o que era sentir essa sensação", comenta. "Junto a isso
foram perceptíveis a exclusão digital e a dificuldade do poder público de
dialogar com as periferias da cidade para ouvir delas o que de fato faz
falta." Ele diz que o grupo pretende discutir o assunto com autoridades.
"Não é justo essas iniciativas partirem somente das favelas."
Uma das
beneficiadas pelo trabalho é a diarista Evelyn Gomes do Nascimento, 31, que se
diz atingida de todas as formas pela pandemia. Moradora do Jardim Record, em
Taboão da Serra (região metropolitana de São Paulo), ela e o marido estão
desempregados. "Venho comprando só o básico, como pão, leite e fralda."
Ela cita que
carne e feijão são luxos que só são comprados quando há promoção. No lugar do
feijão, entra a lentilha. A única renda com a qual a família pode contar
mensalmente são os R$ 275 do Bolsa Família. Para economizar, o casal reduziu o
tempo do banho e desligou a TV. "A gente focou a economia porque não tem
de onde tirar." O projeto, diz, garante a alimentação dos dois filhos.
"Com o que consigo a mais supro outras necessidades."
A crise se
repete na casa da autônoma Taciana Silva Mattos, 31, em Curucutu, bairro de São
Bernardo do Campo (ABC Paulista), onde vive com o marido. "Compro só o
básico quando tenho dinheiro", diz. Ela vende maquiagens, mas nem sempre
rende o suficiente para pagar as contas e bancar a casa. O marido, mecânico,
não é registrado e só recebe quando tem serviço. Com a pandemia, ele trabalha
cada vez menos.
Entre as
mudanças na casa, têm trocado o arroz pelo macarrão. O óleo aparece cada vez
menos no armário da casa; como alternativa, Taciana usa toucinho. "Assim
economizo."
A compra do
mês por lá deixou de ter vários itens que eram ela considerava simples e
essenciais, como
carnes,
legumes e frutas. Mas o problema vai além. "Tive várias crises de
ansiedade resultando em depressão. Me afetou, não só financeiramente mas
mentalmente."
Pesquisa do
Procon-SP aponta que, entre fevereiro e março, 70% dos entrevistados tiveram
diminuição em sua renda individual. Além disso, 87% disseram que os gastos
habituais tiveram aumento na pandemia, principalmente na alimentação (71,47%).
No ano passado,
a cesta básica subiu 31% em São Paulo, segundo levantamento do
Procon-SP/Dieese. Também pesam contas de consumo, como, água, luz e gás.
Além das
dificuldades cotidianas, Pereira, do CEP, diz que o adiamento dos sonhos têm
sido a realidade nos bairros mais pobres. "A compra de um carro ou a
reforma da casa são coisas que ficam em segundo plano neste momento."
O auxílio
emergencial, criado para apoiar famílias na pandemia, tem pago entre R$ 150 e
R$ 375. O recurso criado ano passado por causa da pandemia foi retomado em
abril e estendido até outubro.
FOLHAPRESS
0 Comentários