“A minha filha chegou a me pedir um pão, e eu não tinha para dar. Eu chorava muito, não sabia o que fazer. Botava a mão na cabeça e pedia para Deus me ajudar”. O relato emocionado, de quem tenta segura a dor, é da dona de casa Viviane de Oliveira, mãe da pequena Ilana Sofia, de 10 anos, estudante da rede pública de Maracanaú. Viviane é uma das mães, dentre milhares de outras, que amargam o atraso na distribuição da merenda escolar para famílias cearenses.
Mesmo com os recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) em caixa, quatro das cinco cidades mais ricas do Estado atrasaram o envio dos kits alimentação da merenda escolar de alunos da rede municipal neste ano. Maracanaú e Juazeiro do Norte, 2ª e 4ª maior economia do Ceará, respectivamente, não entregaram um único kit sequer aos familiares dos estudantes nos primeiros meses letivos.
Após as cobranças, Maracanaú começou a entregar os
gêneros alimentícios nesta quarta-feira (28), conforme informou o
prefeito Roberto Pessoa (PSDB) por meio das redes sociais. Já
Juazeiro ainda não divulgou o cronograma de entrega das merendas.
Sobral, que tem o 5º maior PIB entre os municípios
cearenses, e Caucaia, com o 3º maior, distribuíram apenas um e dois kits
alimentares, respectivamente, com atrasos.
Apesar do ensino remoto já durar cerca de três
meses em 2021, nos últimos dois territórios a comida só chegou às mãos dos pais
ou responsáveis pelos estudantes após quase dois meses do início das
aulas.
Fortaleza é a única, entre cinco mais ricas do Ceará, que está na
terceira etapa de entrega dos kits alimentação neste ano, um para
cada mês de aula remota. A Capital concentrar o maior PIB, estimado em R$ 67
bilhões, e foi a única que informou ter investido recursos próprios, além dos
valores do PNAE, para complementar os gêneros alimentícios da merenda escolar.
Os dados sobre as riquezas municipais do Estado são do levantamento
feito pelo Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica (Ipece) e Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, divulgado em dezembro de 2020.
Apontada pelo próprio Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
(FNDE), autarquia vinculada ao Ministério da Educação (MEC), como a principal
refeição do dia para muitos dos alunos da rede pública, a merenda escolar tem
feito falta na mesa dos estudantes do Ensino Básico cearense em um
cenário de maior vulnerabilidade em decorrência da pandemia da Covid-19, que
aumentou o desemprego e comprometeu a renda de famílias em todo o País.
Somente nas quatro cidades com atrasos, a demora na distribuição da merenda
impactou aproximadamente 165.979 alunos matriculados na rede pública desses
municípios, conforme dados obtidos no Censo Escolar, disponíveis no site do
FNDE, tendo como referência o ano de 2021.
Desses estudantes, até a última terça-feira
(27), 75.991 não receberam uma única refeição das gestões de Maracanaú e
Juazeiro do Norte, que justificam o atraso devido ao processo de
licitação.
Juntas, essas quatro
cidades já receberam mais de R$ 7,2 milhões do PNAE neste ano.
As parcelas, liberadas de
janeiro a abril, são repassadas com base nas quantidades de alunos
por município – por isso, alguns recebem mais do que os outros, por terem mais
estudantes. Os dados foram obtidos no site do FNDE.
Pela lei, o dinheiro do programa deve ser
investido exclusivamente em gêneros alimentícios da merenda escolar.
Enquanto os itens não chegam, quem sofre são os
familiares das crianças e adolescentes dessas redes municipais que tentam
driblar a fome e o desemprego com ajuda do próximo.
Direito garantido para quem?
Desempregada desde o início da pandemia e com
três bocas para a alimentar – a dela, de Sofia e a da mãe-, a renda da dona de casa
Viviane de Oliveira, citada no início desta reportagem, atualmente, não chega a
R$ 600 por mês, somados o auxílio emergencial e a pensão da filha, conforme
relata. Apesar dos momentos difíceis, ela não deixa de lembrar da ajuda de
amigos, cruciais no enfrentamento da situação.
“Graças a Deus eu tenho amigos que me ajudam,
mas eles também passam dificuldade e no mês de março não puderam me ajudar. Eu
passei muita apertada, com muita dificuldade mesmo, de chegar a não ter o que
comer. […] E a gente que é mãe se preocupa em ter para o filho”
Viviane de Oliveira
Dona de casa
Fora da sala de aula, as
refeições que estavam garantidas todos os dias úteis da semana na Escola
Genciano Guerreiro de Brito, da rede pública de Maracanaú, agora são uma
preocupação constante e geram questionamentos.
“Eu não entendo, porque se
as aulas estivessem acontecendo tinham que ter a merenda lá todo dia. E agora
não tem?”, questiona, ao acrescentar que, antes da pandemia, a filha, que
estuda em uma escola de tempo integral, recebia o lanche da manhã, almoço e o
lanche da tarde.
“Ela saia de casa só com o
mingau e quando voltava eu dava a janta”, ressalta.
O atraso na merenda escolar
de Maracanaú chegou a ser denunciado pelo Sindicato Unificado dos Profissionais
em Educação no Município da cidade (Suprema) ao Ministério Público do Ceará
(MPCE) diante da falta de justificativas. O órgão informou que vai abrir
procedimento para investigar o caso.
A Prefeitura atribuiu a demora ao processo de
licitação, que foi concluído na semana passada. Além disso, o órgão
acrescentou, por meio de nota, que todos os recursos recebidos do PNAE (R$ 1,8
milhões até o momento) serão utilizados com a compra da merenda.
Na última segunda-feira (26), o prefeito Roberto
Pessoa (PSDB) informou por meio das redes sociais que a distribuição dos
kits alimentação começa nesta quarta-feira (28). Nesta quarta, ele
divulgou no Instagram o início da entrega dos kits.
Juazeiro do Norte
Os alunos de Juazeiro do Norte também ainda não
receberam nenhum kit alimentação da merenda escolar. Lá, todos os dias
professores da rede municipal relatam sofrer cobranças sobre os gêneros
alimentícios, e não têm uma data para a solução do problema para divulgar às
famílias.
“Aqui, em Juazeiro do Norte, todos os
professores recebem relatos de pais de alunos sobre desemprego, energia
cortada, conta de água atrasada, internet cortada e falta de comida na mesa. E
todos os dias nós recebemos questionamentos do que está acontecendo com a
merenda escolar que não chega até os alunos”, frisa o professor da rede pública
e secretário geral do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Juazeiro
do Norte (Sisemjun), Ítalo Freitas.
Por meio de nota, a
Prefeitura da cidade informou que os kits da merenda escolar se
encontram em processo licitatório, tendo em vista que um dos fornecedores
contemplados desistiu na última terça-feira (20).
Com isso, o segundo
colocado foi convocado e está na finalização do processo. Os itens que não são
oriundos da agricultura familiar estão na fase de assinatura dos contratos. Já
os alimentos dos produtores locais passam pela etapa de cotação de
preços.
A Gestão não informou um calendário para a
entrega dos itens alimentícios, ressaltando apenas que a divulgação do
cronograma ocorrerá após a conclusão dos procedimentos.
Sobral
Em Sobral, pais e responsáveis de alunos da rede
municipal foram contemplados com a entrega de um kit alimentação entre os dias
23 de março e 16 de abril. De acordo com a Secretaria de Educação da cidade, os
itens foram adquiridos pelo valor unitário de cerca de R$ 18, totalizando em um
montante de R$ 501 mil investidos para contemplar todas as famílias dos
estudantes (34.637, conforme dados do FNDE).
Como o repasse mensal do FNDE é de
aproximadamente R$ 375 mil e foram investidos R$ 501 mil, a Pasta esclareceu
que foram utilizados a totalidade dos recursos de fevereiro e parte dos de
março. Além disso, como há famílias que têm mais de um aluno na rede municipal,
elas receberam apenas um kit, mas com gêneros alimentícios proporcionais à
quantidade de estudantes no ensino virtual.
Apesar de reconhecer a importância da
regularidade na distribuição dos kits alimentação, o secretário de
Educação da cidade, Herbert Lima, justifica que o agravamento da pandemia
provocou entraves na aquisição dos gêneros alimentícios e distribuição, tendo
em vista que a programação da Prefeitura previa o retorno às aulas
presenciais em fevereiro.
Ele também acrescentou que
depois da próxima entrega, programada para maio, a meta da Prefeitura é enviar
às famílias dos alunos um kit por mês enquanto durar o ensino remoto, o que
deve demandar também recursos próprios do município.
“(A Prefeitura) vai fazer a
complementação, porque, além da parcela que vamos receber (do PNAE), nós
estabelecemos uma meta de manter o investimento de R$ 501 mil mensal”,
concluiu.
Caucaia
Em Caucaia, dois kits
alimentação, referentes aos meses de fevereiro e março, foram entregues entre o
fim de março e início de abril.
O atraso de quase dois
meses após o início das aulas para a distribuição da merenda escolar causou
impactos na vida da dona de casa Lucielia Santos, que ressalta que só
não chegou a faltar nada para o filho Isac Santos, de 2 anos e 6 meses,
aluno da Educação Infantil, porque podia pegar as coisas ‘fiado’ no mercadinho
próximo à sua residência.
“Num chegou a faltar porque a gente pegava
fiado na mercearia aqui em frente. Agora dizer que eu tinha dinheiro, não
tinha”
Lucielia Santos
Dona de casa
Além disso, o MPCE tem dois procedimentos
abertos em Caucaia para apurar a aquisição e distribuição dos kits alimentação.
As suspeitas envolvem compra sem licitação neste ano e desvios da merenda na
gestão anterior.
Por meio de nota, a
Prefeitura de Caucaia informou que a entrega dos kits alimentação referentes
aos meses de fevereiro e março ocorreu por meio de contratação emergencial.
Já a merenda do mês de
abril está em processo licitatório. Assim que os trâmites forem concluídos, as
entrega serão realizadas, garantiu a Prefeitura.
Investigação
Coordenador auxiliar do
Centro de Apoio Operacional da Educação (Caoeduc) do MPCE, o promotor Francisco
Ivan Sousa explica que o órgão pode abrir um processo civil público ou até
criminal para punir os responsáveis pelos atrasos na merenda, caso
irregularidades administrativas ou crimes sejam identificados.
“Ao final da investigação,
caso sendo constatada irregularidades, os responsáveis por tais atos serão
responsabilizados por atos de improbidade administrativa até mesmo chegando as
vias de ser processado criminalmente”.
Foto: Fabiane de Paula
Fonte: Diário do Nordeste
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