Mesmo neste momento, o mais agudo da pandemia de Covid-19 no país até agora, com recorde de casos e de mortes diárias e num estágio em que quase todo mundo conhece alguém que morreu por causa da doença, proliferam comportamentos que atentam contra a própria chance de sobrevivência.
Nem imagens e relatos de pessoas padecendo em UTIs, consegue inibir quem aglomera ou não usa máscaras.
Bruno Cecim/Ag.Pará
Máscaras são deixadas no queixo, no bolso ou
em casa, visitas a amigos ou familiares ganham espaço na agenda e bailes e
festas clandestinas atraem pessoas, apesar da orientação estrita para que
aglomerações sejam evitadas.
Nem imagens e relatos de pessoas padecendo em
UTIs, muitas vezes intubadas e sujeitas a complicações como sepse e sequelas
neurológicas, conseguem inibir completamente essas atitudes.
A psicóloga e professora da UFRN
(Universidade Federal do Rio Grande do Norte) Katie Almondes explica que há uma
espécie de turvação no prisma pelo qual as pessoas enxergam e assimilam os
benefícios de seguirem as normas recomendadas por especialistas e entidades de
saúde.
A mesma confusão se dá na percepção de
eventuais pontos negativos para a adoção da conduta correta.
"Nem sempre as crenças de saúde são
subsidiadas pelas informações técnico-científicas. Elas são retroalimentadas
pela cultura popular, da comunidade, da família... Com relação ao uso de
máscara, há certos aspectos percebidos como negativos. 'É chato, ruim de usar
na academia, as pessoas não entendem o que você fala' etc. Aí elas podem juntar
isso com uma notícia, falsa ou não, que atenua a gravidade da infecção ou até
que diz que a pandemia não existe."
O fato de um parente próximo, como pai ou mãe,
ter tido a doença e ter se recuperado pode levar a pessoa a pensar que tudo que
se vê por aí é sensacionalismo, segundo a psicóloga. E quanto maior for a
afinidade emocional com a fonte das informações, maior será esse poder de
penetração.
O neurocientista Sidarta Ribeiro, também da
UFRN, afirma que, quando o medo é grande demais, tendemos a reprimi-lo. Além
disso, diz que existe uma espécie de "efeito rebote" de medidas de
restrição longas que não foram organizadas e, por isso, não foram tão efetivas.
"Está mais difícil segurar o povo em casa."
Curiosamente, o cérebro humano é ótimo em
perceber e processar novidades, mas se habitua com um estímulo que se repete. A
exceção é a dor, mas só aquela sentida em si mesmo –com a dor alheia, o cérebro
consegue, sim, se acostumar. Daí o fenômeno de a dor representada em fotos e
vídeos terem perdido impacto ao longo dos meses.
"A quarentena se estendeu muito,
pensávamos que ficaríamos apenas semanas ou poucos meses em casa. Aí as pessoas
ficam menos tolerantes e acabam se atrapalhando muito nessa análise",
afirma Irani Argimon, psicóloga e professora da PUC-RS. "Não é piada o que
acontece com essa tolerância ao isolamento. A esperança vai se fragilizando e
as pessoas começam a nem se reconhecer nessa nova situação. O impacto da
pandemia na saúde mental é grande."
Desde os primeiros meses da pandemia já se
notavam os efeitos na saúde mental: primeiro em profissionais de saúde, depois
nos pacientes e na população em geral. Estresse pós-traumático, ansiedade,
insônia, abuso de álcool e ideação suicida estão no rol dessas condições. E a
solidão serve de fermento para que o problema cresça, com menos chance de ser
amparado no seio familiar ou por membros da comunidade.
"É por isso que é importante ter contato
social, seja pelo telefone ou pela janela, com os parentes e vizinhos, mas não
na balada ou em aglomerações", diz Argimon.
Os idosos, especialmente, estão sujeitos aos
malfeitos da atual conjuntura. "Eles já sofrem com um suporte social
inadequado, com a falta de informação e de discussões saudáveis, e agora
perderam ainda mais o amparo nesse momento de fragilidade, medo e
solidão", diz Almondes.
Mesmo assim, surpreendentemente, eles têm se
demonstrado mais resilientes que outros grupos, como os de adultos jovens, argumenta
a docente, provavelmente devido à maior experiência em lidar com situações de
perda e de luto.
Outro aspecto que explica ações inadequadas
na pandemia é o déficit educacional. "As pessoas se esqueceram ou nunca
aprenderam o que é um vírus, que ele pode se espalhar pelo ar em gotículas e
infectar outras pessoas. As pessoas não sabem que usar máscara é uma medida
para não contaminar o próximo", afirma Ribeiro.
"E mesmo quem está fazendo tudo certo
por tanto tempo pode cometer atos falhos, bobeiras, e se contaminar. É um
grande desafio permanecer na linha. Não tivemos uma resposta síncrona à
pandemia, mas, sim, uma resposta anárquica e fragmentada. É a tempestade
perfeita, ainda mais com a vacinação heterogênea. É um pesadelo virando uma
avalanche."
Muitas vezes se cai na armadilha do
fatalismo: por maior que seja o esforço empreendido, o resultado não vai se
alterar. Isso quer dizer que, se tivermos que morrer de Covid-19, isso vai
acontecer, e não adianta ficar infeliz dentro de casa, usar máscara ou se
privar da vida social. Uma das metas é mudar essa mentalidade, mas não é algo
trivial.
Infelizmente os especialistas ouvidos pela
reportagem não enxergam um caminho fácil para educar e sensibilizar a população
neste estágio. Mas há, sim, certas tarefas a fazer.
Para Ribeiro é fundamental intensificar os
investimentos em pesquisa, por exemplo descontingenciando as verbas do FNDCT,
fundo que recebe dinheiro do setor privado com intuito de fomentar a pesquisa,
mas que vem sendo usado pelo governo para atingir suas metas contábeis.
"Nós deveríamos estar desenvolvendo
vacinas no país, distribuindo-as para os outros. Há muitos cientistas
qualificados para isso. Nos termos que o governo federal gosta de usar: temos
um exército gigantesco, mas estamos sem armas e sem munição."
Enquanto a vacina não chega, Argimon
recomenda a busca por atividades prazerosas, como investir na execução de
receitas, organizar o guarda-roupas, passar mais tempo e conversar com os
familiares próximos e trocar mensagens e conversar com amigos mais distantes.
Bater na tecla da doença o tempo todo nem
sempre é produtivo e mudar o fluxo de pensamento pode ser importante, mas sem
deixar de estar atento à gravidade da realidade para se cuidar.
FOLHAPRESS
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