Homem preto, nordestino, integrante de uma família de trabalhadores rurais, Luiz Gonzaga contrariou todas as estatísticas antes de ser consagrado como um dos mais relevantes cantores da música brasileira e, porque não? mundial. Se vivo, o artista, que é motivo de orgulho para a cidade de Exu, interior de Pernambuco, completaria 108 anos hoje, uma data que entrou para o calendário como o Dia Nacional do Forró. A trajetória de sucesso do criador e Rei do Baião, como ficou iconicamente conhecido, também esbarrou em preconceitos regionalistas, que só não foram maiores do que o seu talento e persistência.
(Foto: Reprodução).Pobre e
preto, saiu da casa dos pais no final dos anos 20 depois de um relacionamento
com a filha branca de um “rico coroné”, que o ameaçou de morte. A confusão
aliada aos problemas familiares, motivou sua fuga da casa dos pais, para onde
só voltaria 16 anos depois. Sem emprego e formação, Gonzaga decidiu entrar para
o Exército, às vésperas da Revolução de 30. Naquela época, o alistamento era
uma forma de garantir comida, moradia e dinheiro.
Foi no
ano de 1939 que o cantor pediu baixa do quartel onde serviu em Minas Gerais e
resolveu se mudar para o Rio de Janeiro cumprindo uma trajetória comum aos
nordestinos de sua época, que migragram para o Sul e Sudeste do país em busca
de melhores condições de vida. Nesta época, o Nordeste apresentava a menor
expectativa de longevidade do país com uma média de 37 anos de expecativa
enquanto que o Sul chevaga aos 49 e, 43,5, no Sudeste, segundo dados do portal
Determinantes sociais da Saúde. As diferenças regionais, desde as décadas de
1930-40, já demostravam uma concentração de investimentos nas regiões Sul,
Sudeste e Centro-Oeste, que se beneficiaram de iniciativas nos sistemas de
saúde pública, previdência social, infraestrutura urbana e regulamentação do
trabalho. Todos esses fatores concorreram para o controle e redução das doenças
infectocontagiosas, o que não ocorria no Nordeste do país.
Na cidade carioca, Gozaga começou a trabalhar como artista de
rua. Assim, deu início a um projeto musical que começaria a dar frutos quando
tirou nota máxima no programa do exigente Ary Barroso, da Rádio Tupi, onde
apresentou “Vira e mexe”, canção de sua autoria. Nessa época, o traje
exigido nas apresentação era o smoking. Certo dia, em 1940, influenciado pelo
contemporâneo sanfoneiro Pedro Raimundo, gaúcho que tocava com bombacha típica
dos pampas, Gonzaga decidiu assumir a identidade nordestina nos trajes, que já
o acompanhava nos shows públicos, e apareceu na Rádio Nacional, grande emissora
de então, vestido de vaqueiro. Foi impedido de atuar pelo então diretor
artístico da emissora, Floriano Faissal. “Marginal, não. Roupa de
cangaceiro, aqui, não”, teria esbravejado Faissal.
“Existia,
de fato, naquela época, na cultura urbana do Rio, uma valorização do bolero, do
foxtrote, das músicas que faziam a trilha sonora dos filmes americanos e, por
conta disto, um certo preconceito com relação à música nordestina. E isto se
estendia à vestimenta”, relatou, anos mais tarde, o apresentador da
emissora, Gerdal dos Santos. Nos anos de 1940, o traje típico do sertanejo
nordestino ainda era associado ao bando de Lampião, que foi morto pela polícia
dois anos antes, em 1938. Apesar do preconceito, Gonzaga não se intimidou. Foi
aperfeiçoando o traje, que já usava em suas apresentações fora da rádio, até
conseguir impor sua imagem e o figurino na emissora. A partir daí, o chapéu de
couro e as peças de sua indumentária foram virando uma das marcas registradas
do cantor.
“Uma
voz que representa todo um pedaço esquecido do Brasil”. Foi assim que
Gonzaguinha, filho de Luiz Gonzaga, apresentou o cantor no Festival da Canção,
em 1980, uma das últimas turnês do velho Lua. A devoção do Rei do Baião pela
terra natal o acompanhou por toda a sua trajetória e era algo negritado até no
sotaque que fazia questão de adotar em entrevistas e nas construções de canções
que compôs sozinho ou em parceria com nomes como Miguel Lima, Humberto Teixeira
e Zé Dantas. A escolha se justifica pelo preconceito linguístico que a região
Nordeste sofria e que ainda é uma realidade nos dias atuais.
Gonzaga
manteve-se fiel às suas origens mesmo seguindo carreira musical no sudeste do
Brasil e fez questão de exaltar os traços linguísticos de sua região. Suas
letras falavam da vida simples e, muitas vezes, sofrida do seu povo, mas com
uma poética original e caracterizada por elementos da musicalidade popular
negra como o xote, o xaxado e o forró pé de serra, tendo como base a sonoridade
da sua inseparável sanfona. Não era só de dor que ele falava em suas canções,
mas dos causos e as alegrias dos sertanejos, que ganharam um “porta-voz”. Ao
assumir o sotaque regional, ajudou na valorização da cultura nordestina, além de
aproximar imigrantes no sul do país a suas origens.
A obra
de Luiz Gonzaga ensinou muito sobre o Sertão e sua gente e, até hoje, é fonte
para pesquisas acadêmicas como a dissertação “A oralidade e imagética em
Luiz Gonzaga: uma análise de conteúdo da obra musical do Rei do Baião”, do
mestre pela Universidade Federal de Pernambuco, José Mário Austregésilo da
Silva. O trabalho se dedicou a analisar a oralidade na sua produção que revelou
narrativas do Sertão “importantes para a compreensão das representações do
cotidiano nordestino”.
É
incontestável a influência de Gonzaga para a construção da identidade cultural
do Brasil e até os clichês são "perdoados" porque eles eram
perpassados por muito respeito e reverência. “Gonzaga desfaz equívocos
quanto à identidade do homem e da região, provocando uma nova visão da cultura
brasileira”, discorre José Mário em sua dissertação. A pesquisa aborda
ainda aspectos como as relações do compositor com a indústria cultural, sua
produção discográfica, o rádio como mídia mais importante da sua época,
elementos fundamentais para a compreensão da construção do país.
As recordações que guardou das
terras por onde passou ao longo dos quase 50 anos de carreira estão impressas
nas mais de 500 canções distribuídas em 56 álbuns que lançou ao longo de sua
trajetória. A dedicação à música tinha raízes fincadas num profundo senso de
responsabilidade e compromisso com o luar do sertão que fazia questão de
exaltar por onde passava. Luiz Gonzaga era um homem do povo que respeitou não
só os oito baixos do pai Januário, mas toda a diversidade cultural do chão que
nunca deixou de pisar. “Baião é música pra gente que trabalha, pra gente de
bem. É para ser tocado nas fábricas, nos quartéis, escolas, ruas e praças.
Baião é raça, é lágrima, é suor”, dizia o grande Lua, que segue vivo na
memória afroafetiva da música popular preta e brasileira.
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Com informações do Alma Preta.
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