Atingir o compromisso global de encerrar a pandemia de aids até 2030 passa pelo combate às desigualdades e estigmas que acompanham essa emergência de saúde pública desde o seu surgimento, há 41 anos, destaca o relatório Desigualdades Perigosas, divulgado esta semana pelo Programa das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) para marcar o Dia Mundial de Luta Contra a Aids, celebrado hoje (1°). Especialistas e ativistas reforçam que, mesmo com o avanço dos medicamentos disponíveis, a discriminação contra grupos vulneráves e pessoas que vivem com HIV reduz o acesso à saúde, impede o diagnóstico precoce e causa mortes por aids que poderiam ser evitadas com tratamento.
Relatório do Unaids marca Dia Mundial de Luta contra a doença.
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Segundo o Unaids, 38,4 milhões de pessoas viviam com HIV em todo o mundo em 2021. | Arquivo/Marcelo Camargo/Agência Brasil |
Em mensagem divulgada para marcar a data de combate à doença, o
secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, alertou que o mundo ainda
está distante de eliminar a Aids até 2030 e afirmou que as desigualdades
perpetuam a pandemia da doença.
"São necessárias melhores legislações e a
implantação de políticas e práticas voltadas para eliminar o estigma e a
discriminação que afetam as pessoas que vivem com HIV, sobretudo aquelas em
situação de vulnerabilidade. Todas as pessoas têm o direito de ser respeitadas
e incluídas", disse.
Segundo o Unaids, 38,4 milhões de pessoas viviam com HIV em todo o mundo
em 2021. Esse número é maior que a população do Canadá ou que a soma de todos
os habitantes dos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais. No Brasil, o número
de pessoas vivendo com HIV passava de 900 mil no ano passado, de acordo
com o Ministério da Saúde, e, desse total, cerca de 77% tratavam a
infecção com antiretrovirais. A efetividade do tratamento disponível
gratuitamente no país é reiterada pelo percentual de 94% de pessoas com carga
viral indetectável entre as que fazem uso dos medicamentos contra o HIV. Quando
o paciente em tratamento atinge esse nível de carga viral, ele deixa de
transmitir o HIV em relações sexuais.
Desde o início da pandemia de Aids, em 1980, até
dezembro de 2020, o Brasil já teve mais de 1 milhão de casos da doença, que
causaram 360 mil mortes. A taxa de detecção vem caindo no Brasil desde o
ano de 2012, quando houve 22 casos para cada 100 mil habitantes. Em 2020, essa
proporção havia chegado a 14,1 por 100 mil, o que também pode estar relacionado
à subnotificação causada pela pandemia de covid-19.
HIV ou Aids?
O vírus da imunodeficiência humana (HIV) é um agente infeccioso que pode
entrar no corpo humano por meio do sexo vaginal, oral e anal sem
camisinha; por meio do uso de seringas e outros objetos cortantes ou
perfurantes contaminados; pela transfusão de sangue contaminado; e da mãe
infectada para seu filho durante a gravidez, o parto e a amamentação, se não
for realizado o tratamento preventivo. Quando se instala no corpo humano, esse
vírus tem um tempo prolongado de incubação, que pode durar vários anos, e sua
atividade ataca o sistema imunológico, responsável por defender o organismo. Se
essa infecção não for detectada e controlada a tempo com o uso de
antirretrovirais, o HIV pode enfraquecer as defesas do corpo humano a ponto de
causar a Síndrome da Imunodeficiência Humana (aids). Portanto, a sigla HIV se
refere ao vírus, e a sigla Aids, à doença causada pelo agravamento da infecção
pelo HIV.
O uso de preservativos masculinos e
femininos e gel lubrificante estão entre as principais ações preventivas contra
o HIV. Também já estão disponíveis a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), que
consiste no uso de antirretrovirais para prevenir a infecção caso a pessoa
venha a ser exposta ao vírus, e a Profilaxia Pós-Exposição (PEP), que pode
impedir a infecção caso seja administrada até 72 horas após a exposição. Mesmo
no caso de haver uso dessas profilaxias, a camisinha continua importante, pois previne
também outras infecções sexualmente transmissíveis, como a sífilis e as
hepatites virais.
Ao menos 30 dias após uma possível exposição ao HIV, é fundamental fazer
um teste para a detecção do vírus, exame que pode ser realizado em unidades da
rede pública e nos centros de Testagem e Aconselhamento (CTA). O diagnóstico
precoce da infecção e o início rápido do tratamento protegem o sistema
imunológico da pessoa infectada, já que esse será o alvo do HIV quando a carga
viral aumentar.
Diretor médico associado de HIV da GSK/ViiV
Healthcare, Rodrigo Zili explica que os antiretrovirais usados hoje para o
tratamento das pessoas que vivem com HIV são menos tóxicos para o corpo humano,
causam menos efeitos colaterais e são administrados em quantidade bem menor
de comprimidos. A farmacêutica é a fornecedora do Dolutegravir e outros
medicamentos usados no Sistema Único de Saúde (SUS) para combater o vírus.
Desde 1996, o Brasil distribui gratuitamente os antirretrovirais a todas as
pessoas que vivem com HIV e necessitam de tratamento, contando atualmente
com 22 medicamentos em 38 apresentações farmacêuticas
diferentes.
“O tratamento hoje é
muito menos tóxico. Nem se usa mais a palavra coquetel, porque não é um
conjunto enorme de remédios como se tinha antigamente. E, se a pessoa descobre
o HIV a tempo de não ter desenvolvido a imunodeficiência, ela tem chance
muito grande de ter uma vida totalmente normal tomando remédios diariamente”,
afirma o infectologista. Ele reforça que a pessoa com HIV pode ter
expectativa de vida até maior do que pessoas que não foram infectadas pelo
vírus. “Essa pessoa que está em tratamento está acompanhando todas as
doenças praticamente. Então, ela faz check-ups periódicos, faz exames
periódicos, tem aconselhamento para manter um estilo de vida saudável, e
acaba podendo ter uma vida mais saudável do que alguém que não tem HIV e não
faz acompanhamento médico”.
Mesmo com esses avanços no tratamento contra o HIV
e a disponibilidade gratuita dos medicamentos, o acesso à saúde ainda é marcado por
desigualdades, pondera Zili. “Por mais que se tenha um programa 100% público, o
acesso à informação e aos serviços não é totalmente igualitário”, lembra o
infectologista.
Questões sociais
O coordenador do Grupo Pela Vidda-RJ, Márcio
Villard, avalia que o combate terapêutico à Aids avançou mais do que a
superação dos preconceitos que afetam as pessoas que vivem com HIV. Mesmo com
medicamentos menos tóxicos e uma expectativa de vida maior, questões sociais
afastam pessoas com HIV de uma vida plena.
“Quando a gente fala
em qualidade de vida, não pode entender somente a questão terapêutica e
biomédica. É preciso também entender as questões sociais que envolvem a pessoa
com HIV, porque enfrentamos ainda muitos problemas relacionados a
estigmas, preconceitos e exclusão social que interferem na qualidade de vida”,
afirma. "O que acontece é que o HIV sempre traz consigo uma condenação. De
alguma forma, a sociedade vai te condenar, seja pelo seu estilo de vida, seja
pela sua orientação sexual, seja por você pertencer a um determinado grupo da
sociedade. Praticamente ninguém escapa, até uma criança que nasce com HIV vai
ser estigmatizada por isso. Infelizmente, esse cenário não mudou".
O ativista explica que a estigmatização das pessoas
com HIV tem raízes ligadas à LGBTfobia, já que os primeiros surtos de HIV se
deram na população homossexual, bissexual e transexual nos
Estados Unidos, e a imprensa da década de 80 reforçou a associação entre a
população LGBTI e o HIV, chamando a aids até mesmo de câncer gay.
“Isso começou nos Estados Unidos, se espalhou pelo
mundo e acabou virando um selo. Aqui no Brasil, até o ano passado, homossexuais
não podiam doar sangue, independentemente de ter ou não o vírus”.
O Pela Vidda-RJ foi fundado em 1989 pelo sociólogo e ativista Hebert
Daniel e atua desde então na luta por direitos das pessoas que vivem com HIV.
Às 11h de hoje, o grupo vai promover ato público na Praça Mauá, no centro do
Rio de Janeiro, com o tema Viver com o HIV é possível. Com o preconceito,
não. Entre as principais demandas atuais da população que vive com HIV, Villard
conta que estão a assistência jurídica para garantir direitos previdenciários e
trabalhistas. Os problemas incluem processos seletivos que eliminam candidatos
que testam positivo para HIV, enquanto essa testagem é vedada por lei em
qualquer exame admissional, periódico ou demissional. Fora esses direitos, as
pessoas com HIV também procuram a organização não governamental para receber
acolhimento afetivo.
“A maior dificuldade ainda é a questão do estigma.
Quando a pessoa tem esse diagnóstico, ela tem dificuldade de lidar com
ele. E, ao se colocar para a família, no trabalho e para os amigos, vai
enfrentar discriminação. São raros os casos em que a pessoa consegue viver
tranquilamente, independentemente de sua sorologia”.
Angústia e cura
A dificuldade de encontrar informação e acolhimento
depois do diagnóstico foi o que moveu o influenciador João Geraldo Netto a
compartilhar sua experiência na internet desde 2008.
"Inicialmente,
eu falava de uma maneira mais oculta, não falava especificamente que eu vivia
com o vírus. Mas aí eu senti a necessidade de falar sobre isso mais
abertamente. Eu descobri que, falando, eu me curava de certa forma. Sentia algo
muito positivo quando falava sobre os dramas, os medos que eu tinha de fazer
tratamento, de morrer, de adoecer. E eu vi que aquilo era muito bem recebido.
Isso foi me dando força", conta.
O jornalista acrescenta que a maioria das
pessoas que entram em contato nas redes sociais está angustiada, seja
porque acredita que se expôs ao risco de infecção ou porque já recebeu o
diagnóstico e está tentando lidar com ele. João Geraldo acredita que o peso
social do HIV afasta as pessoas do teste e do diagnóstico precoce, porque
muitas não se percebem parte de um suposto grupo social que poderia ser
infectado e outras preferem não saber o resultado do teste por medo.
“A questão do
preconceito é algo tão forte que atrapalha de fazer o teste, de procurar
ajuda e tratamento e impede que a pessoa tome o medicamento todo dia. Então, o
grande problema do HIV hoje não é mais um problema clínico, é um problema
social”, diz. “As pessoas que chegam ao meu canal mais angustiadas são aquelas
que passaram por situação que consideram moralmente errada e acreditam que é
uma punição para elas. E a pior punição que elas conseguem imaginar é uma
doença como a Aids. Então, isso é muito doloroso, sabe? Porque você vê que está
conversando com uma pessoa que acha que a pior coisa que pode acontecer na vida
é o que você tem”.
Em suas postagens nas redes sociais, o
influenciador comenta sobre HIV e temas do dia a dia e de sua vida pessoal,
como fotos de viagens, reuniões com amigos e declarações de amor ao namorado.
Em um de seus perfis, chamado Superindetectável, ele deixa a seguinte mensagem:
“Respira fundo! Pela frente ainda tem muito mundo. Agora pode não estar, mas tudo pode ficar bem”.
Autor: ( Agência Brasil )
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