Apolêmica mais recente envolvendo a Lei Rouanet começou com uma piada. E a brincadeira sobre uma tatuagem íntima de Anitta acabou desencadeando uma crise entre os cantores sertanejos. O episódio apontou para a complexidade do financiamento público da cultura -e mostrou que aquela história de que sertanejos não precisam de dinheiro vindo do poder público não era bem assim.
A polêmica mais recente envolvendo a Lei Rouanet começou com uma piada. E a brincadeira sobre uma tatuagem íntima de Anitta acabou desencadeando uma crise entre os cantores sertanejos.
A brincadeira sobre uma tatuagem íntima de Anitta acabou desencadeando uma crise entre os cantores sertanejos. | ( Reprodução Instagram ) |
Mas afinal, por que gastar dinheiro público com
cultura? E por que cultura é um tema que parece ser tão sensível para o governo
Bolsonaro e para seus apoiadores?
Agora o financiamento público da cultura volta à
pauta do Congresso Nacional, que nos próximos dias deve votar o veto do
presidente Jair Bolsonaro (PL) à Lei Paulo Gustavo. Mais para a frente, votará
o veto à Lei Aldir Blanc. Entre os críticos da Paulo Gustavo, há os que evocam
o teto de gastos e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Outros falam que há
maiores prioridades, já que somos um país tão cheio de urgências.
Mas se a lei é tão polêmica, por que ela foi aprovada com unanimidade no
Senado, tendo conquistado o sim de nomes de governistas como Flávio Bolsonaro
(PL-RJ), Luis Carlos Heinze (PP-RS) e Marcos Rogério (DEM-RO)? E por que
programas de incentivo a outros setores, como os de indústria e serviços, por
exemplo, não levantam tanta polêmica?
O setor cultural brasileiro passa por uma crise já
há algum tempo. E se outros setores da economia foram tão ou mais atingidos
pela pandemia e pela crise econômica, poucas áreas parecem deixar os ânimos tão
à flor da pele quanto a cultura.
YouTube Sertanejos, Bolsonaro e Lei Rouanet: por
que se gasta dinheiro público com cultura? A polêmica mais recente envolvendo a
Lei Rouanet começou com uma piada. E a brincadeira sobre uma tatuagem íntima de
Anitta acabou desencadeando uma crise entre os cantores sertanejos. O episódio
mostrou a complexidade do financiamento público da cu...
https://www.youtube.com/watch?v=dghDSbvueGo * Fora daqui,
superproduções de heróis de collant, feitas no epicentro do capitalismo
mundial, não dispensam dinheiro público.
Para muitos, pode parecer óbvio, mas financiamento público não é coisa
só de filmes latino-americanos ou experimentais. "Vingadores:
Ultimato", por exemplo, foi uma das maiores bilheterias da história e
custou US$ 350 milhões, de acordo com o New York Times. Esse blockbuster da
Marvel recebeu apoio financeiro dos governos da Nova Zelândia, do Reino Unido,
das províncias de Ontário e Québec no Canadá e do estado da Geórgia nos Estados
Unidos.
O financiamento público é bem frequente no cinema
ao redor do mundo, não só no Brasil. São vários os governos, em especial
aqueles de economia robusta, que entendem a importância de investir na cultura.
Não é só no cinema, mas também nas mais diversas manifestações culturais, do
museu do Louvre a festivais de k-pop na Coreia do Sul.
No Brasil, um dos principais e mais bem-sucedidos mecanismos de
financiamento público da cultura ganhou fama de vilão no imaginário de muitos.
"A Rouanet vira a Geni. Sempre jogam pedra na
Rouanet", diz a advogada Aline Akemi Freitas, especializada no setor
cultural. "É muito difícil ter uma concentração expressiva no nome de um
artista. Você tem nas regras de uso da Rouanet essa limitação, justamente para
evitar essas concentrações. Tem limitação de quantidade de projetos e de teto
por proponente."
"Quando você aprova um projeto, significa que
você ganhou uma autorização para ir captar [dinheiro na iniciativa privada por
meio de renúncia fiscal]. Você pode ou não captar esses recursos. E, mesmo que
capte, há um rigor no controle desse dinheiro que é bastante grande."
Esse controle, acrescenta Freitas, é feito diretamente pela Secretaria
Especial da Cultura, mas também pode ser feito pelo Ministério Público, pela
Controladoria Geral da União e pelo Tribunal de Contas da União. "Tem
muita gente controlando esse dinheiro."
Ela lembra o caso da Operação Boca Livre,
deflagrada em 2016. Para muitos produtores culturais, o episódio gerou um abalo
desproporcional à imagem do setor. Nesse caso específico, um grupo fazia
desvios na Rouanet e um dos envolvidos chegou a pagar seu casamento com
recursos da lei.
Segundo Freitas, os mecanismos de financiamento de
cultura servem também para a criação de uma consciência da importância da
cultura. "O Estado brasileiro decidiu no momento da elaboração da
Constituição de 1988 que cultura seria uma área de priorização."
Então temos aqui uma primeira resposta para a nossa
pergunta. Por que investir dinheiro público em cultura? Em primeiro lugar,
porque é que diz a Constituição, segundo a qual o Estado deve garantir "a
todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura
nacional".
O governo Bolsonaro tem sido acusado de fazer justamente o oposto de
zelar pela cultura. Produtores culturais têm observado uma lentidão nos
processos da Rouanet desde que assumiu a gestão do ator Mario Frias, –que
deixou o cargo para concorrer ao Legislativo pelo mesmo partido de Bolsonaro, o
P. Gestão esta que foi guiada pelo braço direito de Frias, o policial militar
André Porciuncula, que também deixou o cargo para tentar a sorte no Congresso.
Sobre Frias e Porciuncula, recaem até acusações de
censura.
Em julho do ano passado, este jornal mostrou o caso
do festival Jazz no Capão, na Bahia, que foi barrado na Lei Rouanet. O motivo
explicitado no documento foi uma postagem no Facebook feita pela página do
evento, que defendia a democracia e se dizia contra o fascismo.
E aí veio o parecer técnico, recheado de frases
religiosas, alguns erros de português e total desconexão com o que o que
deveria ser. "Eu fiquei me perguntando se era de verdade",
lembra o produtor do festival, Tiago Tao. "[O parecer] trata uma questão
que deveria ser técnica como uma questão ideológica."
O parecer começa citando uma frase de Johann Sebastian Bach. "O
objetivo e a finalidade maior de toda música não deveria ser nenhum além da
glória de Deus e a renovação da alma" -isso estava escrito num parecer
técnico, um documento oficial do governo.
"Uma das ações que eles [gestão Mario Frias]
fazem também é atrasar bastante a tramitação desses projetos, para ver se esses
projetos acabam não sendo realizados", conta Tao, sobre uma prática que
tem sido entendida como censura por muitos.
A gestão Frias afunilou a Rouanet, sob o argumento
de descentralização de recursos. Uma recente instrução normativa diminuiu ainda
mais o teto de captação e limitou os cachês que podem ser pagos a artistas. E,
já que estamos falando de dinheiro, fica aqui mais um motivo pelo qual tantos
países investem dinheiro público em cultura –o econômico. Trata-se de um
setor dinâmico que traz retorno financeiro e gera empregos, além de poder ser
um vetor de desenvolvimento econômico.
Além de ajudar projetos independentes como o Jazz no Capão, a política
pública de cultura ao longo das últimas décadas permitiu que grupos artísticos
brasileiros se consolidassem como referências em suas áreas, como é o caso do
Grupo Corpo, na dança, por exemplo.
"É uma coisa que eu acho sempre meio louco
pensar por que há esse questionamento tão grande na atividade artística e
cultural e não questiona por exemplo os subsídios dados à indústria
automobilística, não se questiona 'trocentos' outros gastos públicos tão maiores",
diz Cláudia Ribeiro, diretora de programação do Grupo Corpo."
O que se gasta com cultura no Brasil é tão pequeno,
que se hoje resolvesse acabar com a Secretaria da Cultura ou com a Lei Rouanet,
ninguém vai sentir diferença nenhuma na parte da educação ou da saúde, porque é
ínfimo. Só vai acabar com a área de cultura realmente", acrescenta.
De fato, Cultura não é nem de longe a área com orçamento mais gordo do
Brasil –e isso não é coisa só deste governo. A renúncia fiscal na cultura
é cerca de 25 vezes menor do que a renúncia fiscal para comércio e serviços.
O produtor Ricardo Fadel Rihan chegou a ser
secretário do Audiovisual no governo Bolsonaro, por um curto período, em 2019 e
2020, antes de Mario Frias assumir a Secretaria Especial da Cultura. Sua
breve gestão foi durante o gabinete de Roberto Alvim, que até então não tinha
feito o famoso pastiche de Goebbels, ministro de Hitler, episódio que levou à
sua demissão.
O produtor diz que foi exonerado por Alvim porque
este o achava moderado demais. "Fui exonerado com um elogio", diz.
Segundo Rihan, a bandeira do liberalismo, que foi levantada pela equipe de
Bolsonaro na campanha eleitoral, nunca foi botada em prática, especialmente na
Cultura.
"A população brasileira tem uma diversidade cultural rara de se encontrar",
diz. "Isso é um patrimônio -e a gente precisa transformar esse patrimônio
em propriedades intelectuais que pertençam a brasileiros, porque senão a gente
vai estar abrindo mão de uma riqueza imensa."
Rihan produziu o filme "Real - O Plano por
Trás da História", também feito com uso de recursos públicos, via Ancine.
"Eu fiz um filme que tinha críticas ao PT -mas críticas dentro do contexto
histórico, críticas elegantes- e eu consegui realizar esse filme durante o
governo Dilma", conta. "Nos primeiros três anos de um governo de
direita, eu que era um cara de centro-direita e que participei do governo por
um período curto de tempo não conseguia realizar nada."
"Seria melhor que a cultura dependesse do Estado? Sim, seria. Mas
se este é um governo liberal, onde estão as políticas públicas para reduzir a
dependência da cultura do Estado? Qual é a política? Acabar com a
cultura?" Também há quem tenha feito parte da gestão de Mario Frias, mas
que hoje recalculou sua rota. É o caso do Maurício Noblat Weissmann, que
foi secretário de Desenvolvimento Cultural, área que cuida da infraestrutura de
determinados equipamentos culturais.
Weissmann diz que faz parte de uma classe média, na
faixa dos 40 e 50 anos de idade, que escalou na nova direita após ter sido
seduzida por desinformação e inflamada por ressentimentos. "Eu entrei
no governo -eu entrei nesse processo histórico- como mais um que caiu na
desinformação. Só que eu tive a coragem de assumir uma postura moral", diz.
Weissmann, que é de origem judaica, diz que a gota
d'água foi quando Bolsonaro recebeu a parlamentar alemã Beatrix von Storch,
vice-líder da ultradireita do país, que é neta do ministro de Finanças na
Alemanha nazista e tem histórico de declarações xenófobas e anti-imigração.
"Em algum momento houve uma demonização ou uma
ruptura de conexão entre uma classe média ressentida, ou movida a
ressentimentos", diz Weissmann.
"Era como se o setor artístico fosse uma elite privilegiada. E de
repente começa a ter um ódio, uma revolta, uma rejeição aos artistas do país,
de todas as áreas. Potencializou essa coisa do 'mamata acabou' como se artistas
fossem parasitas."
"Um tecido social que nutre um ódio permanente
pela sua classe artística -ou pelos seus professores- isso é o ovo da
serpente", afirma. "Esse lance de 'a mamata acabou' é
perigosíssimo." A mamata, a demonização dos artistas, a classe média,
a desinformação vinda do WhatsApp –tudo isso tem a ver com simbolismo.
Por um lado, o simbolismo tem a ver com a identidade
de um povo. E esse é um terceiro elemento que explica por que tantos países
veem importância no investimento na cultura. "Cultura é
identidade", diz Rafael Neumayr, advogado especializado em audiovisual.
"A gente não pode colocar em risco aquilo que nos diferencia do restante
do mundo, constrói a nossa identidade e a nossa personalidade enquanto
povo."
"É importante financiar cultura por meio de políticas públicas
justamente para que a gente não perca o que a gente tem de melhor. Para que a
gente possa continuar produzindo conteúdo autoral, diferente, que dialogue com
a nossa gente", diz o advogado.
Por outro lado, o simbolismo também tem a ver com
as chamadas guerras culturais. Os palcos, telas e partituras muitas vezes tocam
em temas sensíveis e têm o potencial de incomodar e mobilizar muita gente.
Segundo estudiosos como João Cezar de Castro Rocha,
autor do livro "Guerra Cultural e Retórica do Ódio", as guerras
culturais são uma forma de manter mobilizada uma base eleitoral inflamada pelas
redes sociais. É quase rotineiro o surgimento de polêmicas em torno de produtos
culturais, muitas vezes inflamadas pelo governo atual, fruto da era WhatsApp.
Foi assim com "Bruna Surfistinha", filme de 2011 que foi desenterrado
em 2019 por Bolsonaro em uma fala sobre financiamento público da cultura, e
agora o alvo mais recente é um filme de Danilo Gentili.
Mario Frias publicou
um vídeo no Twitter em que, com a voz embargada, chama o longa "Como se
Tornar o Pior Aluno da Escola" de "indecente". Seguindo
esse raciocínio, a cultura é sim muito importante, para o governo atual e para
a nova direita. Só que é uma importância dada sob esse ponto de vista bem
específico das guerras culturais -o que não demanda lá grandes investimentos.
A reportagem procurou
a Secretaria Especial de Cultura para ouvir o posicionamento oficial sobre o
gasto público com cultura, sobre os atrasos na análise de projetos e sobre as
acusações de censura, mas não houve resposta até o momento da publicação deste
texto.
Folha Press
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