Em documento usado para justificar a rejeição de diretrizes de tratamento da Covid-19 ao SUS, o Ministério da Saúde contraria entidades científicas e afirma que há eficácia e segurança no uso da hidroxicloroquina contra a Covid-19.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) reagiu à nota do Ministério da Saúde e reiterou que todas as vacinas autorizadas no Brasil passam por avaliação técnica.
Fábio Pozzebom/Agência Brasil |
Na mesma nota técnica, a pasta declara que as
vacinas não demonstram essas características. Os textos arquivados
contraindicavam o uso de medicamentos do chamado kit Covid.
A manifestação antivacina foi feita em tabela
dentro de documento assinado pelo secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos
Estratégicos, Helio Angotti, uma liderança de ala do governo defensora das
bandeiras negacionistas do presidente Jair Bolsonaro (PL).
As diretrizes rejeitadas haviam sido
elaboradas por especialistas de entidades médicas e científicas e aprovadas
pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS).
Na mesma tabela, o ministério afirma que a
hidroxicloroquina é barata, não tem estudos "predominantemente financiados
pela indústria", mas não é recomendada por sociedades médicas. Já a
vacina, segundo a pasta, é cara, tem estudos bancados pela indústria e é
recomendada por essas entidades.
Esse argumento reforça distorções já
levantadas pelo presidente Bolsonaro de que há interesses impróprios na
aprovação das vacinas.
A diretora da Anvisa (Agência Nacional de
Vigilância Sanitária) Meiruze de Freitas reagiu à nota da Saúde e disse à Folha
que "todas as vacinas autorizadas no Brasil passaram pelos requisitos
técnicos mais elevados no campo dos estudos clínicos randomizados (fase I, II e
III) e da regulação sanitária".
"Não é esperado e admissível que a
ciência, tecnologia e inovação no Brasil estejam na contramão do mundo",
afirmou a diretora. "É preciso que todos estejam unidos na mesma direção,
ou seja, salvar vidas", completou.
O Ministério da Saúde aponta que não há
demonstração de efetividade da vacina "em estudos controlados e
randomizados" nem de segurança "em estudos experimentais e
observacionais adequados".
Ainda afirma que outros tratamentos contra a
Covid não têm resultado, como manobra de prona e ventilação não invasiva. Na
tabela, a pasta diz que anticorpos monoclonais funcionam.
Procurados, a assessoria da Saúde e o
ministro Marcelo Queiroga não se manifestaram sobre a tabela.
A tabela contradiz declarações oficiais da
Saúde. Em nota enviada à Folha na sexta-feira (21), a pasta disse que "a
vacinação é segura e foi autorizada pela Anvisa".
Ao assumir o Ministério da Saúde, em março de
2021, Queiroga anunciou que promoveria o debate na Conitec para encerrar a
discussão sobre o uso do kit Covid. Ele indicou o médico e professor da USP
Carlos Carvalho, contrário aos fármacos ineficazes, para organizar grupo que
iria elaborar os pareceres.
Queiroga, porém, modulou o discurso e tem
investido em agrados a Bolsonaro para se agarrar ao cargo. Ele passou a evitar
o tema, ainda que admita a colegas que não vê benefícios no uso destes
medicamentos.
O ministro ainda alterna, em discursos,
elogios à compra e entrega das vacinas com acenos à ala bolsonarista que duvida
da segurança e eficácia da imunização. Gestores do SUS cobram que Queiroga,
além de atuar na compra das doses, faça campanha de estímulo a imunização das
crianças.
Nas redes sociais, porém, a Saúde aposta em
reforçar que a imunização dos mais jovens é uma decisão dos pais e
responsáveis.
Especialistas e sociedades médicas que
participaram da elaboração da diretriz preparam um recurso ao ministério para
reverter a decisão de rejeitar o texto.
Devem assinar o recurso a Amib (Associação de
Medicina Intensiva Brasileira), a SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), a
SBPT (Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia) e a AMB (Associação
Médica Brasileira).
"Não tem lógica e base técnica nenhuma
essa análise [do ministério]", afirma o infectologista Julio Croda,
pesquisador da Fiocruz e professor da UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso
do Sul). "Mostra claramente que é uma decisão política [rejeitar a
diretriz] e não técnica".
"Já passou do ato de ato de autonomia
médica para algo criminoso, de indução do uso de medicações sem nenhuma
comprovação científica", disse ainda Croda.
Angotti também questionou, na nota da Saúde,
a metodologia utilizada pelos especialistas, o rigor técnico dos estudos e até
mesmo possíveis conflitos de interesse do grupo.
O secretário rejeitou três capítulos da
diretriz hospitalar da Covid, todos aprovados por unanimidade na Conitec. Além
disso, arquivou o texto sobre tratamento ambulatorial, aprovado por sete a seis
no mesmo colegiado.
" Essas vacinas que são alvos de ataque
por parte do secretário estão autorizadas em todas as agências do mundo",
disse Nelson Mussolini, presidente-executivo do Sindusfarma (Sindicato da
Indústria dos Produtos Farmacêuticos).
"Todos os estudos são patrocinados pelo
detentor da patente", afirmou ainda, sobre menção do ministério ao
patrocínio da indústria às pesquisas sobre vacina. Mussolini é membro da
Conitec como representante do CNS (Conselho Nacional de Saúde).
Em movimento liderado pelo pelo secretário, o
governo tentou boicotar o debate da Conitec. Agora, o mesmo grupo quer retirar
do comando da comissão a servidora Vania Canuto, que votou a favor do texto que
contraindica a hidroxicloroquina, entre outros medicamentos.
FOLHAPRESS
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