Milhares de brasileiros sofrem, diariamente, com a falta de medicamento em diversos postos de saúde em todo o país. Mesmo com o déficit no fornecimento de remédios, o Ministério da Saúde parece não estar preocupado com os produtos que ficam no estoque da pasta.
Quase todos os produtos expiraram durante o governo de Jair Bolsonaro.
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O Ministério da Saúde deixou vencer a validade de um
estoque de medicamentos, vacinas, testes de diagnóstico e outros itens que, ao
todo, são avaliados em mais de R$ 240 milhões. Agora, todos esses produtos
devem ser incinerados.
O cemitério de insumos do SUS está em Guarulhos
(SP), no centro de distribuição logística da pasta. Ali estão 3,7 milhões de
itens que começaram a vencer há mais de três anos. Quase todos expiraram
durante a gestão de Jair Bolsonaro (sem partido).
Todo o estoque é mantido em sigilo pelo ministério.
A pasta usa documento interno de 2018 para negar pedidos de acesso aos dados
sobre produtos armazenados ou vencidos, argumento já apontado como inadequado
pela CGU (Controladoria-Geral da União).
Mas o jornal Folha de S.Paulo teve acesso a tabelas
do ministério com dados sobre os itens, número de lote, data de validade e
valor pago pelo governo. A lista de produtos vencidos inclui, por exemplo, 820
mil canetas de insulina, suficientes para 235 mil pacientes com diabetes
durante um mês. Valor: R$ 10 milhões.
O governo Bolsonaro também perdeu frascos para
aplicação de 12 milhões de vacinas para gripe, BCG, hepatite B (quase 6 milhões
de doses), varicela, entre outras doenças, no momento em que despencam as taxas
de cobertura vacinal no Brasil. Só esse lote é avaliado em R$ 50 milhões.
Os produtos vencidos também seriam destinados a
pacientes do SUS com hepatite C, câncer, Parkinson, Alzheimer, tuberculose,
doenças raras, esquizofrenia, artrite reumatoide, transplantados e problemas
renais, entre outras situações.
Alguns itens que serão incinerados estão em falta
nos postos de saúde.
No fim de agosto, o governo da Bahia reclamou do
atraso na entrega de medicamentos pelo ministério, como o metotrexato, usado
para alguns tipos de câncer. Há 24 mil frascos-ampola vencidos no almoxarifado
do governo Bolsonaro.
O Ministério da Saúde também guarda cerca de R$ 345
mil em produtos perdidos dos programas de DST/Aids, principalmente testes de
diagnóstico, além de R$ 620 mil em insumos para prevenção da malária.
Dados internos do governo mostram que devem ser
incinerados mais de R$ 32 milhões em medicamentos comprados por ordem da
Justiça. A maior parte desses fármacos é de alto custo e para tratamento de
pacientes de doenças raras, uma bandeira do governo. Ao lado da primeira-dama,
Michelle Bolsonaro, o ministro Marcelo Queiroga (Saúde) lançou no último dia 31
a "Rarinha", nova mascote do SUS.
No meio deste estoque há um frasco-ampola de
nusinersena, avaliado em R$ 160 mil, e 908 frascos de eculizumab, que custaram
R$ 11,8 milhões. São medicamentos usados em dois dos tratamentos mais caros
existentes.
Vice-presidente do Instituto Vidas Raras, Amira
Awada afirma que há grave desabastecimento e estima que mais de mil pacientes
aguardam por remédios.
"O que nós mais
escutamos é que somos culpados pelo déficit orçamentário do Ministério da
Saúde, mas é a pasta que perde milhões ao deixar medicamentos vencerem. Nós
passamos da fase da revolta, estamos sem perspectiva", disse Awada.
A entidade calcula que 15 milhões de pessoas vivem
com doenças raras no Brasil. "Eu nunca vi uma situação tão difícil em 12
anos. Não conseguimos nem falar com eles [representantes do ministério]."
Parte dos medicamentos de doenças raras foi
devolvida ao ministério por pacientes que deixaram de usar os produtos ou
morreram. A Saúde não respondeu se fez o remanejamento dos fármacos.
O deputado Luis Miranda (DEM-DF), que também teve
acesso aos dados, fez questionamentos ao Ministério da Saúde sobre o volume de
material desperdiçado. Para o deputado, que denunciou suspeitas de
irregularidades na compra da vacina Covaxin à CPI da Covid, os medicamentos
vencidos são ainda mais preocupantes.
"A conduta é um escárnio com a saúde do
Brasil. Medicamentos e recursos públicos, que poderiam salvar vidas, estão
apodrecendo. Qual a razão para a compra desses medicamentos não utilizados?
Qual o motivo de mantê-los armazenados depois de vencidos? Enriquecer
empresas?", disse.
Em plena pandemia, o governo Bolsonaro também
perdeu cerca de 2 milhões de exames RT-PCR para Covid, avaliados em mais de R$
77 milhões.
A fabricante fez uma doação de exames da Covid
novos à Saúde para repor o estoque vencido, mas o intervalo e a burocracia até
a chegada do produto fizeram cair a entrega dos exames ao SUS, como mostrou a
Folha de S.Paulo.
O ministério ainda
guarda 2,2 milhões de exames sem validade para o diagnóstico de dengue, zika e
chikungunya, todos vendidos pelo laboratório público Bahiafarma. Estes lotes
custaram cerca de R$ 60 milhões e foram interditados em 2019 por ordem da
Anvisa. A Saúde não informou se pediu ressarcimento ou reposição destes exames.
Com isso, ao todo, os testes de diagnóstico sem
validade respondem por cerca de 60% (R$ 140 milhões) do valor dos insumos
vencidos.
O diretor do Dlog (Departamento de Logística) da
Saúde, general da reserva Ridauto Fernandes, disse à Folha de S.Paulo que a
perda de validade de produtos "é sempre indesejável", mas ocorre
"em quase todos os ramos da atividade humana". Ele afirmou que
"não pode comentar" sobre o estoque.
"Em supermercados, todos os dias, há descarte
de material por essa razão", disse o general. "Nos esforçamos para
que isso não ocorra", completou.
Área que atua na ponta da linha da gestão dos
insumos, o Dlog ficou sob comando de Roberto Dias, indicado do centrão, durante
a maior parte do governo Bolsonaro. Ele só foi exonerado em 29 de junho, após o
cabo Luiz Paulo Dominghetti afirmar à Folha de S.Paulo que recebeu de Dias
cobrança de propina para destravar a venda de vacinas.
Em alguns casos, como de falha do produto ou quando
ele é fornecido com validade curta, o governo consegue repor parte do estoque
vencido por acordos contratuais com as fabricantes, mas a operação pode atrasar
os tratamentos.
Mas há situações de prejuízo total aos cofres
públicos e aos pacientes, como no caso das canetas de insulina. Apesar da alta
demanda, a Saúde não entregou e vai incinerar cerca de 20% da compra de estreia
deste produto no SUS, feita em 2018.
O endocrinologista
Fadlo Fraige Filho, presidente da Anad (Associação Nacional de Atenção ao
Diabetes), afirmou que erros cometidos ainda em gestões anteriores à de
Queiroga levaram ao atraso na entrega das canetas aos pacientes.
Ele disse que, além de demorar para comprar agulhas
para as canetas, o governo exigiu que os produtos fossem liberados em centros
especializados e após a apresentação de laudos complexos. "Elas deveriam
ser distribuídas como são as (insulinas) regulares, nas unidades básicas,
eventualmente no Farmácia Popular", disse.
Procurada, a Saúde não explicou por que os produtos
perderam a validade e qual o tamanho e valor do estoque que conseguiu repor nas
negociações com fabricantes. Também não apresentou dados da série histórica dos
estoques nem disse qual valor paga para armazenar e descartar os insumos
vencidos.
Em nota, a Bahiafarma disse que a diretoria da
Anvisa ainda não julgou recurso sobre a interdição dos lotes. Também afirmou
que os testes vencidos já começaram a ser recolhidos e que estão estocados em
armazéns dos estados. Dados do ministério obtidos pela Folha de S.Paulo, porém,
apontam que há exames vencidos deste laboratório na central de distribuição do
governo federal em Guarulhos.
Para o presidente do Conass (Conselho Nacional de
Secretários de Saúde), Carlos Lula, o estoque é desproporcional. "A
situação é gravíssima e precisa ser apurada. Pode derivar não só de má gestão,
mas ser ato de improbidade."
Representante da Abrasco (Associação Brasileira de
Saúde Coletiva), Wagner Gastão afirma que o volume de insumos vencidos é sinal
de "degradação e desmonte" do ministério.
"É uma máquina
complexa, mas a história do ministério não é essa. Sempre há produtos vencidos,
mas tem de ser algo residual, senão é indicador grave de ineficiência",
afirma Gastão. Ele também é professor de medicina da Unicamp e
ex-secretário-executivo da Saúde (2003 a 2005).
CEMITÉRIO DE INSUMOS
Dados obtidos pela Folha de S.Paulo mostram estoque
de medicamentos, testes e vacinas vencidos avaliado em mais de R$ 240 milhões.
Há cerca de 3,69 milhões de itens, que podem servir a um número muito maior de
pessoas no SUS, pois cada frasco de vacina, por exemplo, têm até dezenas de
doses.
Produtos vencidos
CGLAB (Coordenação Geral de Laboratórios): R$
140,73 milhões
Mais de 2 milhões de testes RT-PCR de Covid, além
de exames de dengue, zyka, chikungunya, leishmaniose e diversos reagentes.
Vacinas: R$ 49,59 milhões
Cerca 12 milhões de imunizantes para BCG, gripe,
pólio, hepatite B, tetra viral, soros para diversas doenças, além de diluentes
Remédios comprados por ordem judicial: R$ 32,99
milhões
Principalmente medicamentos de alto custo para
doenças raras, como eculizumab (HPN) e atalureno (Distrofia Muscular de
Duchenne).
Medicamentos excepcionais: R$ 17,72 milhões
Caneta de insulina e
tratamentos para hepatite C, esclerose múltipla, Alzheimer, Parkinson, entre
outras doenças.
Outros: R$ 1,93 milhão
Hemoderivados, tratamentos de raiva, tuberculose e
produtos de prevenção à malária
Programas de DST/Aids: R$ 420 mil
Principalmente kits de diagnóstico de HIV e HCV
Fonte: documentos internos do
Ministério da Saúde
FOLHAPRESS
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