Que tipo de filme ou história costuma te atrair mais? As de superação? Aquelas em que o personagem principal dá a volta por cima? Então se prepare para ler uma assim.
Thiago passou quase uma década entre a expulsão e o ganho da causa. Nesse período estudou para se defender.Reprodução
Das primeiras suspeitas que o levariam a ser
expulso da Polícia Militar, sob acusação de peculato, até a decisão final que o
inocentou, foram quase dez anos. Nesse intervalo, Thiago Oliveira Lacerda, 41,
formou-se em direito, enfrentou a "desonra" para conseguir sua
habilitação como advogado e, atuando em causa própria, conseguiu ganhar na Justiça
o direito de ser reintegrado à corporação.
Desde o final do mês passado, quando sua
reintegração foi publicada no Diário Oficial do Estado, o PM é um dos assuntos
mais comentados entre os policiais paulistas por conta dessa trajetória única,
da difícil vitória obtida no Tribunal de Justiça Militar (TJM) e pela quantia
que deverá receber de direitos atrasados –cerca de R$ 500 mil.
"Minha absolvição explodiu no Estado todo. Tem muita gente me ligando, porque essa decisão ressuscita o ânimo de muitas pessoas que estão em situação parecida", disse Lacerda ao jornal Folha de S.Paulo.
Hoje o advogado, Thiago Oliveira Lacerda, aos 41 anos Divulgação
A ocorrência que causou quase uma década de
sofrimento ocorreu na noite de 2 setembro de novembro de 2011. Um morador da
Freguesia do Ó, na zona norte de São Paulo, acionou a PM para "averiguação
de atitude suspeita". Um desconhecido havia pulado um muro e largado
objetos na calçada.
Uma equipe foi encaminhada e Lacerda, como superior
hierárquico (cabo) e mais experiente, decidiu apoiar os colegas na ocorrência
porque havia estado no mesmo local pouco mais cedo, por suspeita parecida, mas
infundada. O apoio de colegas em ocorrências é algo comum no policiamento
ostensivo.
No local, não havia mais nenhum suspeito, apenas
objetos sem valor jogados na calçada. Conforme Lacerda lembra, havia um guia de
macumba, santinhos em papel e bijuterias, como anéis "que vêm em
chiclete". Também havia duas garrafas abertas, parcialmente consumidas,
uma delas de bebida alcoólica, possivelmente utilizada nos rituais religiosos
da esquina-encruzilhada.
"O solicitante disse: 'eu só quero que tire
isso da porta a minha casa, policial. Não quero ocorrência, não quero ir ao DP,
não quero fazer nada'", conta Lacerda.
Os policiais decidiram consultar o sargento
comandante. Ao ver o material, a decisão foi a mais simples. "Só tem
tranqueira, não tem vítima; pode jogar fora. Se levar para a delegacia, o
delegado não vai apreender, não tem nada. Pode jogar fora", disse o
sargento, conforme confirmaria depois.
Para Lacerda, fazendo todos os registros sobre aquela
decisão, a publicidade necessária, o futuro demonstrou ter sido uma decisão
errada. "Esse foi o grande erro. Porque a grande dúvida da PM passou a ser
de que nós pegamos esse material para a gente. Furtado, entre as aspas, aquelas
coisas. Mas todos avaliaram que não havia nada."
Essas suspeitas surgiram na manhã seguinte, quando
uma vizinha do local onde os objetos foram localizados procurou a unidade da PM
da região para ver se, entre o material encontrado, havia joias dela. A mulher
alegava que sua casa havia sido furtada naquela noite e algumas joias foram
levadas pelos criminosos, embora não tivesse queixa registrada nem registro dos
bens alegados.
Ainda que sem provas de que os policiais ficaram
com objetos de valor, ou que mulher falasse a verdade, a PM pediu a expulsão
dos quatro policiais envolvidos na ocorrência. Dois deles pediram demissão
antes da conclusão do processo. "Só a palavra dela valeu. A nossa não
valeu nada. Só a da mulher, por ser advogada, valeu 100%", disse Lacerda.
No meio da investigação, desgostoso com a
corporação, Lacerda pensou em pedir baixa. "Preenchi toda a documentação,
mas, na última hora, pensei: pô, já que vou advogar mesmo, vou brigar. Se eu
pedir baixa, não tenho mais chance. Se deixar me expulsar, tenho como provar lá
na frente que eu não fiz nada'. Foi nessa mentalidade que fui levando."
Lacerda concluiu a faculdade de direito na Uninove
em agosto de 2014, três meses antes de ser expulso. Foi aprovado no exame da
OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de primeira, mas a expulsão da PM
atrapalhou essa liberação. "O processo que iria durar 15 dias durou três
anos. Eu dei entrada na OAB em fevereiro de 2015, e somente em dezembro de 2017
me deram o registro, que peguei em maio de 2018. Olha só o tamanho do prejuízo
que a PM me arrumou", disse.
O motivo, conta ele, foi a carteira de reservista
devolvida pela PM.
"Quando eles te expulsam, eles te dão uma
maldita carteira de desonra de reservista, que ninguém conhece. E a pessoa da
OAB que pegou meus documentos nunca tinha visto aquele documento, um
certificado de despensa com desonra. A OAB abriu, então, um processo para ver
se eu era digno de ser advogado. Aí, acabou minha vida de vez", afirmou.
O processo que Lacerda iria enfrentar no TJM previa
uma pena, em caso de condenação, de 3 a 15 anos de prisão. E o processo dele
caiu com o juiz Ronaldo João Roth, da 1ª Auditoria Militar, magistrado
recordista em condenações de policiais corruptos. "Eu poderia pega 15 anos
de cadeia. Imagina?", disse Lacerda.
O magistrado, porém, ao analisar todas as provas¸
as versões apresentadas pela defesa e pela acusação, decidiu pela absolvição
dos réus. Não pela falta de provas, como queria a Promotoria, mas por
inexistência de crime. "Ademais, a conduta dos acusados em se desfazer dos
bens abandonados e sem valor, não os apresentando na Delegacia de Polícia, foi
em razão da determinação do CGP, sargento PM Marco Antônio, segundo a versão
dos réus e respaldada pelo depoimento do motorista da viatura daquele, o Sd PM
Celso Rodrigo Fernandes. Então, não houve o peculato", diz a sentença.
Em novembro de 2019, depois de ter seu pedido de
reintegração negado pela PM, o advogado Thiago Lacerda ingressou com pedido no
Tribunal de Justiça Militar. Venceu em primeira e segunda instâncias. Em
fevereiro de 2021, sustentou oralmente por que deveria voltar à PM.
"Vivi minha vida com dignidade, de lá para cá
tenho exercido a advocacia, tenho ajuda de muitos policiais militares, no
âmbito administrativo, criminal e até na esfera comum. Não perdi minha
idoneidade. Não fui preso, não respondi processo, não fiquei indignado e
comecei a fazer tatuagem. Não", afirmou ao magistrado, conforme gravação.
"Estou tão apto hoje para ser policial militar quanto estava em 2010,
2011, 2012, 2013, 2014."
Foi vitória foi unânime.
Mas, agora, Lacerda está com dúvidas. "Preciso
voltar para receber os atrasos e fazer essa contagem de tempo, mas não estou
com vontade nenhuma de voltar. Ser policial, como eu fui, acho, não dá mais. Eu
adorava a PM", disse.
Procurada, a Polícia Militar informou que, segundo
o decreto federal nº 20.910, de 6 de janeiro de 1932, "qualquer direito ou
ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua
natureza, prescreve em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem".
A OAB informou que, tendo em vista os documentos
apresentados por Lacerda, o pedido foi encaminhado para análise e apreciação do
Tribunal de Ética e Disciplina da entidade, como determina o estatuto.
"A finalização de análise e julgamento de
processos administrativos internos varia conforme a complexidade do caso",
finaliza nota.
FOLHAPRESS
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