O número de meninas vítimas de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs), somados entre janeiro e outubro deste ano, é quase o dobro do ano passado no Ceará, de acordo com levantamento realizado pelo G1. Enquanto nos dez primeiros meses de 2019, 23 meninas entre 0 e 17 anos foram vitimadas no Estado, no mesmo período de 2020, 44 garotas perderam a vida para a violência.
Na maior parte das
ocorrências deste ano — 28 dos 44 casos — disparos causados por uma arma de
fogo foram o motivo da morte. A quantia corresponde a 63% das garotas perdidas.
Em números absolutos, o valor é 57% maior do que registrado até outubro de
2019. Na época, 16 meninas foram vitimadas pelo instrumento, o que correspondeu
a 69% das notificações daquele ano.
As informações foram
calculadas a partir das estatísticas publicadas mensalmente pela Secretaria da
Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). A pasta considera como CVLI os
crimes de homicídio doloso, feminicídio, lesão corporal seguida de morte e
roubo seguido de morte.
“A gente vive em um
momento onde um discurso autoritário contra os corpos femininos está muito
legitimidado. O feminicídio é marcado por morte com crueldade e não é só crime
relacionado à violência doméstica. É também uma relação de poder”, reforça a
socióloga Camila Holanda, uma das consultoras do Comitê Cearense pela Prevenção
de Homicídios na Adolescência (CCPHA) da Assembleia Legislativa do Estado do
Ceará (ALCE).
Essa representações do
gênero é absorvida pelos conflitos urbanos em um ano já violento, indica
Camila, e aparece atrelado à falta de política de amparo em espaços de
vulnerabilidade social. Sem receber a atenção devida, garotas podem virar alvo
de organizações criminosas.
“A escola não é um lugar
que agrega, o mercado de trabalho é voltado para informalidade. Isso é promotor
de insegurança. É uma geração que está em busca de construir projetos de
futuros que estejam alinhados com seus desejos. Nisso, o mundo do crime entra como
atrativo. As meninas também participam disso”, avalia a socióloga.
Agravante
Ao avaliar as vítimas
femininas, a defensora Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos
e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria Pública do Ceará (DPCE), aponta uma
confluência de delicadezas. “Há um processo de criminalização da própria
vítima”, elabora. Por isso, ao receber juridicamente os familiares das vítimas
“é preciso todo um trabalho para não permitir, desde a hora do inquérito, que
nem as vítimas nem as famílias sejam criminalizadas”.
Mariana está à frente da
Rede Acolhe, célula da defensoria que recebe familiares de vítimas de homicídio
no Ceará. Além das vulnerabilidades sociais, parte das meninas atendidas pelo
núcleo compartilham uma premeditação do crime. “O que a gente observa é que de
acordo com as famílias, mais das metade dos casos receberam ameaçadas antes de
virarem vítimas”, recorda. Nas estimativas da Rede, foram 192 atendimentos
relacionados à violência contra mulheres e meninas desde o surgimento do
projeto em 2017. Deste total, 11 tiveram como vítimas meninas entre 0 e 19
anos.
As investidas violentas
contra meninas, contudo, ainda não estão especificadas nas estatísticas da
SSPDS. Os boletins mensais mostram que apenas a morte de uma menina de 17 anos
foi reconhecida como feminicídio em 2020. Em 2019, três mortes dessa natureza
foram notificadas — uma delas contra uma criança de dois anos de idade.
Assim como Camila, a
defensora acredita na efetivação de políticas para juventude como fator preventivo
para o aumento de casos. “A gente acha que a resposta é a investigação e a
responsabilização. Tem que ocorrer mas não tem que existir sozinha. É preciso
investir em políticas sociais. De trabalho, de emprego, claro, mas também da
presença do Estado em bairros de menor IDH. Seja com uma política de saúde,
seja com uma política educacional”, encerra. Usado para medir a qualidade de
vida em uma determinada região, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é
calculado levando em consideração fatores como renda, educação e saúde.
Fiscalização
Questionada sobre o
aumento, a SSPDS respondeu, em nota enviada ao G1, que reforçou ações para
evitar os crimes violentos contra vida e enumera a criação do Departamento de
Proteção aos Grupos Vulneráveis (DPGV) da Polícia Civil do Estado do Ceará
(PCCE), bem como a ampliação do número de delegacias do Departamento de
Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), de cinco para 11 ainda em 2017. Nas
unidades DHPP, os casos cujas vítimas são crianças e adolescentes são
prioridade, garante a pasta.
Jovens em situação de
violência também podem ser acompanhados por meio da Delegacia de Combate à
Exploração da Criança e do Adolescente (Dceca). Caso uma unidade voltada para
atendimento especializado não esteja disponível na região, a população pode
comparecer às delegacias municipais e receber atendimento de profissionais
capacitados.
A Secretaria da
Segurança salienta ainda a ampliação do trabalho de investigação nas delegacias
de todo o Estado, o que deu ainda mais capilaridade à Polícia Judiciária
cearense, bem como intensificou as investigações de crimes em todo o Ceará. Nos
últimos seis anos, o número de delegacias 24 horas no Ceará mais que dobrou,
passando de 13 para 32 unidades plantonistas.
Locais com maiores
índices de crimes contra a vida são alvos de operações. A SSPDS indica que atua
no fortalecimento da polícia investigativa nesses locais para coibir a atuação
e a disputa entre organizações criminosas. “A presença permanente da Polícia
nos territórios têm o objetivo de neutralizar a ação de grupos criminosos e construir
uma relação de confiança junto aos moradores”, destaca a pasta.
Uso de
armas
2019
·
112 homicídios com arma de fogo em menores de idade
(84,2% dos 133);
·
16 meninas (69% de 23)
·
96 meninos (87,2% de 110)
2020
·
197 homicídios com arma de fogo em menores de
idade; (67%)
·
28 mulheres (60% dos 46)
·
169 homens (68% de 246)
Por Cindy Damasceno, G1 CE
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