Um bebê negro já tem risco maior de morte em relação a uma criança branca antes mesmo do seu nascimento. Mulheres pretas e pardas respondem por 65% das mortes maternas, aquelas que ocorrem na gestação ou nos 42 dias após o parto. Muitas vezes, com elas, vão junto os seus filhos.
Mulheres pretas têm menos menos acesso ao pré-natal e segundo levantamento da Fundação Abrinq, 70% da mortes de bebês negros até um ano são por causas evitáveis, como diarreias e pneumonias.Freepik
Ainda que os esforços na prevenção e cuidado das gestantes e dos
recém-nascidos tenham sido ampliados nas últimas décadas, permanecem as disparidades
de acesso ao pré-natal entre gestantes negras e brancas.
Segundo dados preliminares do Ministério da Saúde, em 2019, 81% das
gestantes brancas realizaram, no mínimo, sete consultas de pré-natal. Entre as
negras, a taxa é de 68,1%.
"Como as mães têm menos menos acesso ao pré-natal e não recebem
tratamento correto, crianças negras têm mais sífilis congênita, por
exemplo", diz a médica Denize Ornellas, membro do Grupo de Trabalho da
População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.
Até um ano de vida, crianças negras terão 22,5% a mais de chance de
morrer em comparação às brancas. A taxa de mortalidade infantil é 13,98 por mil
nascidos vivos entre os negros e 11,41 entre os brancos.
Segundo levantamento da Fundação Abrinq, 70% da mortes de bebês negros
até um ano são por causas evitáveis, como diarreias e pneumonias. Nas crianças
brancas, a taxa é de 62%.
Ano passado, 12.428 crianças negras morreram nessas condições contra
8.510 brancas. Os números compilados pela entidade em 2019 são ainda
preliminares.
Para Victor Graça, gerente-executivo da Fundação Abrinq, os dados
indicam o desequilíbrio de acesso das crianças negras às medidas de prevenção e
cuidado.
"Uma desigualdade vai levando a outra. Os negros têm menor renda,
e, quanto menor a renda, maior o risco de desnutrição, de acesso a saneamento,
à saúde."
Os estudos da Fundação Abrinq mostram que, quando selecionadas as
crianças negras e brancas de até 14 anos de idade que têm renda domiciliar
mensal per capita de até meio salário mínimo, as negras permanecem sendo as que
estão em condições domiciliares mais precárias: 9,9% não possuem banheiros em
casa, por exemplo.
A disparidade também se manifesta no peso das crianças ao nascer: 5,4%
dos bebês negros nascem abaixo do peso esperado enquanto entre os brancos a
taxa é de 3%.
"As políticas públicas precisam fazer uma busca ativa dessas
crianças, criar redes de vigilância. Não dá para esperar só no posto de saúde.
Muitas pessoas não têm recursos nem para pegar um ônibus até o posto",
reforça Graça.
Denize Ornellas lembra que o tempo de amamentação da mulher negra também
tende a ser menor que o das brancas, o que traz impacto à saúde do bebê.
"Elas estão mais no mercado de trabalho informal e têm dificuldade de ter
licença-maternidade."
Os efeitos das disparidades só vão se acumulando. "As mães negras
têm mais dificuldade de encontrar vagas em creches. Se crianças ficam mais
tempo fora da escola na primeira infância, serão menos estimuladas e isso
prejudica o desenvolvimento."
O impacto da violência na saúde física e mental das crianças negras é
outro tema que preocupa os médicos de família. "Essas crianças são
expostas a conteúdos violentos muito cedo", diz Ornellas.
Na avaliação de Thomas Hone, pesquisador do Imperial College de Londres
e que estuda a atenção primária no Brasil, o papel dos serviços de saúde nas
disparidades raciais ainda é pouco estudado no país. Mas, segundo ele, filhos
de negros estão em desvantagem por causa de um status socioeconômico mais baixo
e da discriminação racial contínua que sofrem.
"Crianças negras são mais dependentes da atenção primária e dos
serviços públicos de saúde para atender às suas necessidades."
Segundo a médica Fátima Marinho, pesquisadora sênior da Vital Strategies
e professora de saúde pública da UFMG"(Universidade Federal de Minas
Gerais), o corte de verbas e de equipes de saúde da família que vem ocorrendo
na atenção primária à saúde pode aumentar ainda mais essas disparidades na
saúde das crianças negras.
"O Mais Médicos era um programa que havia se juntado ao saúde da
família e conseguiu chegar em áreas muito pobres, mais desassistidas. E é
justamente onde está essa população preta e parda."
Ela lembra que o corte no programa Bolsa Família também tende a piorar
os indicadores da saúde da criança negra. "Nesse momento a gente deveria
reforçar as políticas sociais para minimizar o impacto da crise econômica no
povo mais pobre."
O ESF (Estratégia Saúde da Família) tem contribuído para a redução da
mortalidade infantil, segundo o estudo do Núcleo Ciência pela Infância,
integrado pela Fundação Bernard van Leer, Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal,
Insper, Faculdade de Medicina da USP e Universidade Harvard.
A pesquisa identificou que a presença de uma equipe de ESF nos
municípios é capaz de produzir uma queda gradual na taxa de mortes infantis a
partir do segundo ano de atuação dos profissionais, variando de 3% a 9%.
No terceiro ano de atendimento, a diminuição fica entre 6,7% e 14%,
sendo ampliada para uma média que varia entre 20% e 34% no oitavo ano.
Além da ampliação do acesso aos serviços de saúde, Denize Ornellas
defende que a educação médica também precisa mudar para que o cuidado à saúde
das famílias negras seja aperfeiçoado.
"Precisamos falar sobre como fazer a abordagem de uma família sobre
o conteúdo racial quando a criança está na barriga e depois quando nasce. Como
preparar essa criança para o racismo que ela vai sofrer?"
Abortos também matam mais entre
mulheres negras
São Paulo"Embora faltem dados sobre aborto no Brasil e não haja nos
sistemas de saúde qualquer informação sobre aborto inseguro, os riscos do
procedimento no país são maiores para pretas, pardas e pobres, que estudaram
pouco.
Os dados disponíveis se restringem aos óbitos por aborto e às
internações por complicações de aborto no serviço público de saúde. E são as
negras, inclusive as meninas, as que mais morrem ao tentar interromper uma
gravidez.
Enquanto entre mulheres brancas a taxa é de 3 óbitos causados por aborto
a cada 100 mil nascidos vivos, entre as negras esse número sobe para 5. Para as
que completaram até o ensino fundamental, o índice é de 8,5, quase o dobro da
média geral de 4,5.
Segundo o IBGE, o índice de aborto provocado das mulheres pretas é de
3,5%, o dobro do percentual entre as brancas (1,7%). O perfil mais comum de
mulher que recorre ao aborto é o de uma jovem de até 19 anos, negra e já com
filhos, segundo o estudo nacional.
Elas também têm mais dificuldade de conseguir atendimento no primeiro
hospital ou maternidade que procuram, têm menos acesso a anestesia durante o
parto normal (16% das que tiveram acesso eram negras, já entre as brancas sobre
para 22%), e morrem mais em decorrência da gestação (53% contra 41%).
Os números do Ministério da Saúde mostram ainda que, enquanto o número
de casos de mortalidade materna (óbitos durante e logo após a gestação e inclui
abortos) cai entre as mulheres brancas, ele sobe entre as negras.
FOLHAPRESS
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