O agronegócio é um dos setores mais pujantes da economia brasileira. É o único, pelo lado da oferta, a crescer mesmo durante a pandemia. O país acumula superavit na balança comercial agro de mais de US$ 60 bilhões este ano, graças à produtividade crescente, impulsionada pelas aplicações tecnológicas que invadiram as grandes propriedades rurais. No entanto, a agricultura familiar, que garante 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros, continua distante do agrotech 4.0, excluída por conta da baixíssima escolaridade, da falta de conectividade e do acesso limitado ao crédito. Isso porque, apenas com investimento em conectividade e inclusão digital, o país poderia dar um salto de até R$ 78 bilhões no valor bruto da produção agrícola.
Em plena pandemia do novo coronavírus, as safras de soja, arroz e café
asseguraram crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) agropecuário de 0,4%, no
segundo trimestre de 2020, ante os três primeiros meses do ano, e de 1,2% na
comparação com igual período de 2019. De janeiro a agosto, a balança comercial
brasileira do setor registrou superavit recorde de US$ 61,5 bilhões. As
exportações somaram, em receita, US$ 69,6 bilhões no acumulado dos oito
primeiros meses, uma alta de 8,3% em relação ao mesmo período de 2019, e
totalizaram 152,4 milhões de toneladas em volume, aumento de 15,8%, segundo a
Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).
Enquanto isso, nas pequenas propriedades, segundo o ex-secretário de
Agricultura e Desenvolvimento Rural do Distrito Federal Argileu Martins da
Silva, mais de 2 milhões de famílias agricultoras, que representam 42% dos
estabelecimentos rurais que comercializam seus produtos, têm valor de produção
de até R$ 5 mil por ano, ou seja, renda de pouco mais de R$ 400 por mês. “Esse
universo de produtores está na pobreza ou abaixo dessa linha”, afirma Argileu.
Os dados do Censo Agro 2017, do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), também apontam baixíssima escolaridade na agricultura
familiar: 21% dos produtores brasileiros não sabem ler nem escrever; 15%, nunca
frequentaram a escola; e 43% têm até o ensino fundamental. Além disso, se a
tecnologia é um fator preponderante para aumentar a produtividade, a
conectividade e o uso de ferramentas digitais definem a inclusão ou a exclusão
de produtores rurais no processo.
Contudo, diz Argileu, dos 5 milhões de estabelecimentos rurais, menos de
28% têm conexão à internet e, desses, apenas 46% têm banda larga. “O restante é
internet móvel, que os produtores acessam só nos centros urbanos, portanto, sem
poder usar como uma ferramenta na produção”, alerta. Segundo ele, as políticas
públicas voltadas à agricultura familiar vêm perdendo força. “No universo de
5.073.324 de estabelecimentos rurais, em torno de 60% — ou pouco mais de 3
milhões — comercializam a produção. Há, pelo menos, 2 milhões que não vendem
nada”, revela.
Dos 3 milhões que comercializam, para 45%, a renda em outras atividades
é maior do que o rendimento da agropecuária da propriedade. “O agricultor
familiar vende seu serviço em alguns dias da semana, na colheita de outros
produtores, e, com isso, obtém mais recursos do que na sua produção. Isso,
aliado ao grande número de estabelecimentos sem venda, mostra o potencial de
crescimento da agricultura familiar”, avalia. “Quando se analisa os grandes
números, 10% dos agricultores são responsáveis por mais de 80% do valor bruto
da produção. Isso sugere que os demais não têm importância econômica”, ressalta
Argileu.
O fato é que 70% da soja são exportados e, dos 3 milhões de
estabelecimentos que comercializam a produção, somente 245 mil são produtores.
“Eles são responsáveis pelo superavit na balança, mas os produtores
estratégicos para o abastecimento do país, com frutas e hortaliças, estão na
agricultura familiar. Porque, na commodity, a renda por hectare é pequena, e é
preciso plantar grandes áreas”, explica. “Ou seja, se a produção na agricultura
familiar fosse incentivada, com políticas públicas e acesso ao crédito, o país
teria mais segurança alimentar”, estima.
Rochinski assinala que o próprio Programa de Fortalecimento da
Agricultura Familiar (Pronaf) só atinge determinado patamar da categoria. “Esse
universo de 2 milhões nunca foi atingido, porque o foco das políticas é crédito
rural. Mas, como dar crédito se grande parte não tem nem cadastro em banco?”
Visibilidade
Assim como o Brasil identificou invisíveis entre os trabalhadores
informais, durante a pandemia, há despercebidos, também, na agricultura
familiar, diz o coordenador da Contraf Brasil. “Há produtores rurais que nem
sempre conseguem ser visibilizados. São os que vendem na própria comunidade,
entre vizinhos, em feiras. Embora não percebidos pelo Estado, têm impacto nas
condições de vida das populações locais”, ressalta. “É preciso política de
fomento, com crédito não bancarizado. Se isso existisse, talvez não
estivéssemos passando por essa crise de elevação dos preços dos alimentos”,
cogita.
“O agricultor familiar vende seu serviço em alguns dias da semana, na
colheita de outros produtores, e, com isso, obtém mais recursos do que na sua
produção. Isso, aliado ao grande número de estabelecimentos sem venda, mostra o
potencial de crescimento da agricultura familiar”
Produção no quintal de casa
A produtora rural Gisely Cristina Coité, 37 anos, passou a cultivar
alimentos orgânicos no quintal de casa, em 2013, para consumo próprio e da
filha, que era pequena. Na época, conta, a oferta de orgânicos era muito menor
e ela precisava visitar vários locais até encontrar produtos de qualidade. “A
gente começou a plantar no quintal da nossa casa e foi dando muito certo. Não
conseguíamos (produzir) tudo porque ainda estava aprendendo, mas o que
conseguíamos era bom, livre de agrotóxicos. E podíamos fornecer com segurança
para a nossa filha e, também, consumir.”
Com a experiência, Gisely conta que ela e o marido sentiram vontade de
continuar produzindo, com maior variedade de alimentos. Na época, a família
morava na Região Administrativa do Gama. Para aumentar a produção, o casal
alugou uma chácara vizinha. “Temos alface, cebolinha, mandioca, batata-doce,
cenoura, mamão, banana, laranja, limão, tangerina e plantas alimentícias não
convencionais, também. A gente procura produzir as hortaliças, aqui, no meio
das árvores do cerrado, então, a gente faz a conservação das plantas nativas e
vai plantando também”, conta. “Em paralelo, começamos a comunidade CSA da
Florestta, com cinco famílias, à época, querendo financiar a produção dos seus
alimentos. Foi isso que deu o fôlego financeiro para produzirmos esses
orgânicos e fornecer às famílias”, diz.
O problema principal, segundo ela, foi a assistência técnica. O ramo de
alimentos orgânicos era escasso em informações, comenta. “Fomos buscar estudo
por conta própria, fazer cursos, e fomos testando. Hoje, já existe mais
assistência técnica. Tem o Senar-DF (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural
Administração Regional Distrito Federal), tem cursos on-line gratuitos. A
Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-DF) também tem se
especializado nessa ajuda e, agora, é referência para o resto do país.”
Em uma chácara própria, em Luziânia (GO), há dois anos e meio, Gisely
explica que o acesso a linhas de crédito no ramo dos orgânicos é outra
dificuldade. “A gente nunca conseguiu, parece que é um tabu. Infelizmente, a
Emater de Luziânia nos informa que só tem financiamento para gado (leite) ou
produção de soja. E a gente não tem acesso ao crédito rural. Acredito que esse
seja o principal problema. Agora, mesmo, precisamos comprar um trator, e eu não
tenho dinheiro”, lamenta.
Desafios
A produtora rural faz parte da coordenação do Sindicato dos Produtores
Orgânicos do DF (Sindiorgânicos/OPAC-Cerrado), que auxilia os agricultores no
processo de certificação da produção orgânica, de forma voluntária. Segundo
ela, os problemas enfrentados pelos produtores atendidos são os mesmos que os
enfrentados por ela. “Falta informação, assistência técnica de qualidade,
crédito. E a gente não tem muito acesso à tecnologia, máquinas para nos
auxiliar no manejo do produto orgânico, porque é tudo manual. A gente tem custo
alto com mão de obra, porque precisa fazer muitos serviços manuais.”
Gisely pede uma ajuda mais incisiva aos produtores. “Hoje, o DF obriga
que parte da aquisição de alimentos seja de produtores orgânicos. Nesse
sentido, o governo pode nos ajudar no fornecimento de crédito focado nesse
setor, por exemplo.”
Apostando no digital
A agricultura familiar é carente de políticas públicas específicas,
sobretudo, no que diz respeito à inclusão digital para aproveitar os benefícios
que a tecnologia garante ao setor, mas tanto o Executivo quanto o Legislativo
estão cientes dessa limitação e buscam soluções. O diretor de Inovação do
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Cleber Soares,
garante que a pasta está preocupada com a necessidade de transformação digital
no campo. “O maior problema, para isso, está associado à ausência de
conectividade. Pouco mais de 25% da área rural agrícola possuem conexão”, diz.
Segundo ele, levar internet e assistência aos pequenos produtores pode elevar o
valor bruto da produção em até R$ 78 bilhões.
Apesar de faltar conectividade em toda zona rural do o país, Soares
afirma que um mapeamento apontou como regiões mais críticas o Norte e o
Nordeste. “Temos que prover conexão utilizando telefonia móvel 2G, 3G e 4G.
Para soluções rápidas, até 2G funciona”, ressalta. O diretor destaca que é
necessário investimento em infraestrutura. “Para cobrir próximo de 50% do
território agrícola, é necessário instalar 4,4 mil torres e antenas
(equipamento das estações rádio-base). No segundo cenário, com 15,2 mil
estruturas, a cobertura sobe para 89% do território agrícola.”
Soares destaca que o Ministério das Comunicações está identificando as
áreas mais vulneráveis e de difícil alcance para usar o satélite geoestacionário.
Em outra parceria, com o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI),
por meio da Rede Nacional de Pesquisa, que cuida de infraestrutura de fibra
ótica, o governo está mapeando até onde vai a rede, para implementar a última
milha (trecho final). “E, a partir daí, irradiar para as propriedades rurais.”
O impacto de levar conectividade a 50% do território será de R$ 46
bilhões no valor bruto da produção, diz Soares. “No cenário de cobertura de
quase 90%, o incremento é de R$ 78 bilhões, valores que consideram como base o
Censo de 2017 e que, portanto, já são maiores”, destaca. Porém, há um outro
desafio, acrescenta. “Pela baixa escolaridade, temos que promover educação
digital. Para essa camada, a abordagem pedagógica precisa ser diferenciada. Com
metodologias e soluções de fácil entendimento”, diz.
“Fuga da roça”
No Parlamento, a discussão passa pelo projeto de lei nº 172/2020, que
dispõe sobre finalidade, destinação dos recursos, administração e objetivos do
Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust). O deputado Zé
Silva (Solidariedade-MG) explica que o objetivo é usar os mais de R$ 30 bilhões
do fundo para levar internet ao campo. “A conectividade permite segurança no
campo, geolocalização, georreferenciamento, comunicação entre vizinhos,
irrigação automatizada, ajuda a vender a produção e receber orientação
técnica”, elenca.
O deputado apresentou um substitutivo aos 26 projetos existentes na
Câmara com medidas de apoio à agricultura familiar. Ele lembra que a declaração
de aptidão ao crédito rural, hoje, é excludente e concentradora. “Enquanto o
crédito do plano safra aumentou 7%, de 2005 para cá, os produtores aptos caíram
de 5 milhões, naquele ano, para 2,5 milhões, no ano passado”, indica.
O deputado Vilson da Fetaemg (PSB-MG) defende uma política de preço
mínimo para agricultura familiar. “(Os pequenos produtores) São responsáveis
pela produção de 70% dos alimentos. São eles que colocam comida na mesa dos
brasileiros, mas não têm condições de competir no mercado, que têm a figura dos
grandes atravessadores. Isso fez o povo sair da roça.” (SK)
Por: Correio
Braziliense
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