O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, certa vez
sugeriu não existir verdades absolutas. No Sertão cearense, essa frase sai do
campo do pensamento e invade o universo dos fatos. É verdade que a quadra
chuvosa deste ano foi a terceira melhor das últimas duas décadas no Ceará, conforme
dados da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme). Assim
como também é verídico afirmar que milhares de sertanejos não viram cair, sobre
suas cabeças, tamanha chuva.
Eles carecem de água há, pelo menos, sete anos. E
diante desta míngua de algo tão precioso eles se reinventam. Aliás,
reinventar-se é uma característica inerente a este povo - talvez até por
imposição dos caprichos naturais, como ocorrera neste ano, com bons volumes
pluviométricos em algumas regiões e cenário de quase escassez em outras.
Nos sertões de Crateús e Inhamuns, um grupo de
pescadoras de 12 municípios representa essa mudança frente à estiagem que é
considerada, naquela localidade, a pior dos últimos 50 anos. São 401 mulheres
que aprenderam a conviver com a seca e foram além.
Conseguiram ampliar a área de atuação por meio do
projeto "Pescadoras e Pescadores: Construindo o Bem Viver", realizado
pela Cáritas Diocesana de Crateús, Conselho Pastoral dos Pescadores Regional
Ceará e a organização italiana CISV, cofinanciado pela União Europeia e
Conferenza Episcopale Italiana. O projeto assiste ainda 431 homens.
Por intermédio dessas organizações, essas mulheres
adquirem novos conhecimentos para a produção de bens. Além do reforço
financeiro alcançado com a venda dos produtos, elas conquistam algo cujo valor
não se pode mensurar: o resgate da autoestima.
"Ainda encontramos bastantes dificuldades e
preconceitos em relação à nossa profissão. Não somos respeitadas como
deveríamos, mas, graças ao projeto, hoje, nós, pescadoras, somos mais unidas e
estamos conquistando nossos direitos", pontua Joelma Ferreira, pescadora
da cidade de Independência. Ela acrescenta que por meio das atividades em
grupo, houve fortalecimento "da autoestima e do nosso autoconhecimento
como pescadoras".
APRENDER
E ENSINAR
Um dos modelos de atuação da empreitada, iniciada
em 2017, é a troca de conhecimento entre a comunidade pesqueira. O aprendizado
acontece de forma coletiva, do mesmo modo com que é disseminado. "Tudo
aqui é passado para frente", garante a pescadora da cidade de Aiuaba,
Jozileide de Sousa Pereira. "Queremos que muitas outras mulheres também
conquistem a independência", ressalta.
Durante as atividades do projeto, elas aprendem a
produzir trufas, pão caseiro, sabonete artesanal, dentre outros itens que podem
ajudá-las a adotar um novo estilo de vida e enfrentar a realidade marcada pela
falta de água e peixe.
"O inverno neste ano não foi bom. Foi mais um
ano difícil", alerta Jozileide, referindo-se à quadra chuvosa, período
entre os meses de fevereiro a maio nos quais a chuva é esperada. Com a pouca
água acumulada nos açudes, o pescado naturalmente se torna limitado. É neste
momento que o "Construindo o Bem Viver", mais uma vez, entra em ação.
As mulheres aprendem a agregar valor ao peixe. "Hoje, preparo outros produtos
derivados dele, como a linguiça de peixe, bolinhas e hambúrgueres. Também estou
passando meus conhecimentos para outras mulheres, assim, elas também poderão
melhorar a renda e quebrar os preconceitos que a sociedade ainda tem sobre o
papel da mulher pescadora", completou Joelma.
REDESCOBERTA
O olhar crítico da pescadora sobre o contexto
social é analisado positivamente pela cientista social Aldenizia Maia. Ela
observa que "aprender a fazer trufas, detergentes, ou outros itens pode
parecer algo pequeno, mas serve para as mulheres perceberem que, sozinhas,
podem movimentar dinheiro, e no universo pesqueiro dominado por homens, o
aumento do poder econômico é simbolicamente muito forte".
A pescadora do município de Novo Oriente, Maria
Aparecida Ferreira Costa, relata que após ter ingressado no projeto "há
mais de um ano", passou a ser vista "com outro olhar". "Não
sabia qual era meu lugar ou meu papel. Na verdade, a gente não era nem
observada. Hoje, é diferente, sabemos nossos direitos, nos sentimos bem por
poder contribuir financeiramente em casa e, além disso, agora conseguimos fazer
outras coisas que não somente pescar. Pelo menos, se a seca permanecer, a gente
já não morre de fome", comemora Aparecida.
Diário do Nordeste
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