Só se pode imputar um crime a
alguém se caracterizada a culpabilidade, a qual será atestadasomente após o
trânsito em julgado.
Nos últimos anos, temos visto que
regras jurídicas que pareciam não deixar margem para dúvidas passaram a ser
afastadas com base em julgamentos morais, por vezes fazendo referência ao
clamor social. E aqui se encontra a fragilidade do momento pelo qual a nossa
democracia passa. É que uma das premissas básicas para a manutenção do Estado
Democrático de Direito é o papel contramajoritário do Judiciário: cabe a este
poder preservar a integridade e a estabilidade do sistema jurídico – sobretudo
das normas constitucionais – para fins de prevenir deliberações contingenciais.
É
possível afirmar que os papéis de todos os poderes da República estão sendo
colocados à prova. Ocorre que, ao revés do Legislativo e do Executivo, que
estão passando por um momento de descrédito, o Judiciário está passando pelo
teste do excessivo protagonismo. O ponto sensível é que esse destaque acirra
julgamentos ao sabor das circunstâncias – até para afastar o ônus social das
deliberações contra a maioria. A aplicação do direito posto é o que dá lugar à
maior imparcialidade e trata-se de boa vacina contra críticas apaixonadas.
Admitir
que seja possível a execução provisória da pena é mitigar um direito
fundamental.
O
recente entendimento do STF no sentido de que é possível a execução provisória
da pena após a condenação em segunda instância é um exemplo de flexibilização
de normas específicas sobre a matéria em favor de argumentos não jurídicos. O
artigo 5.º, inciso LVII, da Constituição Federal estabelece que “ninguém será
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Logo,
a norma constitucional dispõe que a pessoa apenas poderá ser considerada
culpada quando não houver mais possibilidade de recorrer da decisão. Há quem
argumente que não ser considerado culpado é diferente de não ser preso.
Contudo, só se pode imputar um crime a alguém se caracterizada a culpabilidade,
a qual será atestada somente após o trânsito em julgado.
Trata-se
de uma regra clara. Admitir que seja possível a execução provisória da pena é
mitigar um direito fundamental. Essa lógica vai na contramão dos limites até
aqui conquistados em relação ao agir do Estado. Ainda que sem respaldo
jurídico, preterem-se os direitos fundamentais em prol do punitivismo estatal.
Lula
não só pode como deve ir preso: Lula não está acima da lei
(artigo de José Eli Salamacha, mestre em Direito Econômico e Social)
Observe-se
que o Código de Processo Penal estabelece em seu artigo 283 que, com exceção
das prisões cautelares, só será permitida a prisão em decorrência de sentença
condenatória transitada em julgado. Neste ponto, o STF, mais uma vez ignorando
o texto normativo, deu “interpretação conforme” para que fosse possível aplicar
o entendimento sobre a possibilidade de execução provisória da pena.
A
condenação do ex-presidente Lula no segundo grau trouxe o tema novamente para o
centro das discussões jurídicas. É que, pelo atual entendimento do STF, pode
haver a prisão logo após o esgotamento dos recursos no TRF4. Ocorre que, em
razão da visível inconstitucionalidade que incide sobre esse entendimento e dos
bons votos divergentes que ficaram vencidos à época, tudo indica que a posição
do STF pode mudar para acolher uma interpretação consentânea com o sistema
constitucional.
Se
vier essa mudança, que seja para ficar. Independentemente do caso que se esteja
a julgar, a técnica é a saída. E, nesse tema, não há margem para dúvida: a
Constituição brasileira impede a prisão antes do trânsito em julgado – seja
para Lula, seja para quem for.
Carol
Clève, advogada, é mestre em Ciência Política e professora de Direito
Constitucional e Eleitoral do Centro Universitário Autônomo do Brasil
(UniBrasil).
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